O bonde não sei pra onde
Romualdo, vamos chama-lo assim, era primo de minha mãe, lá das bandas de Sete Lagoas e Paraopeba, terra de Vó Fela, Vovô Macaco,Padin Fulô e minha mãe...
Era um sujeito simplório, muito calmo que só tinha o curso primário,mas era um cara extremamente interessado, curioso e ávido por uma leitura dos jornais diários.Adorava entrar numa roda de discussão, pois,assim adquiria mais conhecimentos e mostrava os seus, que não eram poucos.
Me lembro de duas curiosidades a respeito dele;Uma, que era Getulista doente e sofreu muito, por ocasião do suicídio do nosso ex-presidente
Ia pra Praça Sete, que nos anos cinqüenta era uma espécie de Tribuna do povo e nas discussões sobre Vargas, sempre chegava ás lágrimas; Em sua casa, simples perto da linha do trem,num bairro depois do nosso, no lugar na parede, onde normalmente ficavam os quadros com as imagens de Jesus e Maria nas casas dos pobres, ele tinha pendurado uma foto colorida de Getúlio, grampeado junto uma cópia da “carta de despedida” do presidente e ainda no mesmo prego,dependurado uma pequena e rota bandeira do Brasil.Todo mês, invariavelmente, ele nos fazia uma visita, pra saber de todos e "colocar o papo em dia".
Numa dessas eu estava sozinho em casa quando Romualdo chegou e ao notar a quietude da casa que estava sempre cheia começou a perguntar:Cadê a prima?"Mãe deve ter ido até a casa de Marinês, aquí perto,respondí...Vamos até lá, a gente vai conversando;Eu dava informações sobre meus irmãos enquanto ele perguntava por todos, um a um; E o Betinho, Aécio tá por onde? "O Betinho tá em Recife, Romualdo...É diretor de uma Editora de Enciclopédias e viaja muito, respondí;Quando chegou a vez do Rubinho, meu irmão nº 4, expliquei: O Rubinho tá em Barbacena.É médico Veterinário e especializou-se em Inseminação Artificial, tá ganhando um bom dinheiro...Romualdo quando ouviu "Inseminação Artificial", franziu a testa, fez ares de entendido e mandou: É , eu sei como é...Esse negócio de "bebê de trombeta", né? Deus que me perdoe, isso já virou uma "cachorrada"!
Eu segurei o riso e continuamos a caminhada...
Romualdo era casado com uma negra linda de nome Nerita e seu primeiro filho ,batizaram por nome Getúlio.
A outra coisa marcante nele,era que no meio do maior bate-papo, se o interlocutor parasse de falar, ele lentamente fechava os olhos e em segundos, dormia profundamente.
Ninguem entendia o que era aquilo, mas todos já estávamos acostumados com o ronco baixinho de Romualdo, no meio de qualquer conversa;Qualquer pausa na conversa, era a deixa pra ele “puxar o ronco”.
Ainda está vivo, um grande cantor brasileiro,puxador de samba nos desfiles da Mangueira, que é famoso, não só pelos seus dotes musicais, como também por sofrer do mesmo “incômodo”.
Já o vi dormindo em pé encostado no batente da porta,nos bastidores da TV Globo e em estúdios de gravação ou até em filas pra receber seu “cachet” que é o pagamento por serviços musicais do Artista.Me lembro também,de ter lido na adolescência numa revista em quadrinhos da Disney, que um personagem que tinha este mesmo problema, havia sido picado pela “mosca Tzé-Tzé”.
Como é que essa mosca tzé-tzé foi achar o nosso Romualdo lá na casinha na beira da linha do trem?
O cantor famoso, puxador de sambas, jamais foi prejudicado em seu ofício durante os desfiles da Mangueira por causa do barulho infernal da ala da bateria, mas já houve quem presenciasse que ele nos “bailes de formatura” em que atuava com Orquestra, numa vez que o pianista não entrou na hora do “solo”, se entregou aos braços de Morfeu e voltou segundos depois de uma pancada nos pratos do baterista, cantando uma outra música que não tinha nada a ver com aquela que havia começado a cantar...
Se esta era uma semelhança comum aos nossos dois personagens, a grande diferença estava nas profissões dos dois; Enquanto este era “Cigarra” e levava a vida cantando,nosso Romualdo era formiga e trabalhava em qualquer estação do ano na profissão de(pasmem):
“Motorneiro de Bonde” da linha Renascença, o bairro de minha infância;
Sim senhores, era o cara responsável por conduzir o bonde quase sempre lotado da Renascença até á Praça Sete, no centro da cidade.Embora na ida, o cobrador ficasse papeando com ele lá na frente esperando o bonde lotar,pra começar a cobrar, na volta é que morava o perigo. Ás vezes chegava um ou outro moleque ofegante na rua que mais parecia um “tobogan”,em que estávamos jogando pelada,com os olhos arregalados dizendo; _”Aí gente, o bonde descarrilhou de novo lá no ponto final!
É que Romualdo, ao chegar na Renascença, estava “em sonhos,” na sua cama de colchão de palha com sua doce Nerita, quando terminados os trilhos, o bonde acabava invariavelmente, rodando sobre os paralelepípedos da Rua Jacuí...
Um belo dia alguém teve a "brilhante" idéia de fincar dois pedaços de trilhos na posição vertical ,bem no final da linha e Romualdo quando sentia o esbarrão do bonde nos trilhos em pé, virava-se pros passageiros e gritava na maior “cara de pau”: Aí pessoal, Ponto final!
Chegamos, graças a Deus!