Bebel e o cartaz

Talvez o segredo da rua fosse cada um de nós. Sendo impossível arrancar qualquer mistério porque éramos o enigma. Nós que nos enfiávamos no escuro dos cinemas para untar com sombras amargas o nosso esperanto. Época em que estávamos prontos para morrer em versos. Mesmo que Bebel rejeitasse nossos olhos. Até porque Bebel nunca esteve presente em nossas almas. Conhecia apenas um livro de Loyola, talvez o único que havia lido até o fim. Havia perdido um certo conceito por se ter deixado apanhar pela publicidade num cartaz bem produzido. Sua expressão de Brigite Bardot, seus lábios macios, cortados pelo frio, sequer fazia estrago em sua beleza de figura. Bebel agora era o cartaz, um ícone espalhado pela cidade. Em torno dela as nuvens trabalhavam para que no máximo estendesse sua mão, submersa pelas frases poéticas de Bodelaire, Verlaine ou expressão polida de Machado de Assis. Visões que insistíamos em lhe desenhar. Precisávamos de uma única mulher que fosse como a floração dentro de um sonho.

Quando Selistre entrou em casa, naquele estilo provençal, carregando debaixo do braço uma edição recente de Lima Barreto, viu Bebel a sós. Abrindo-se como a terra partida e úmida pela erosão das chuvas. Os pardais pipilavam de modo orquestral criando uma atmosfera de paciência e terna felicidade. Bebel era da rua como todos nós espalhados pela capital. Recebeu a visão rara da beleza se tornando apaixonada sem causa, uma rebelde. E nós? Nós éramos seres amarelados pelos cigarros e nervos. Rabiscando romance em silêncio movediço. Dominados pela transparência daquilo que é desejado, mas nunca alcançado. O que não se pode realizar inundava o coração tomado por geladas cervejas num oceano de dúvidas.

Depois veio o período de isolamento. A terra não parecia ser a mesma. A rua quieta permanecia sem vida. Vavá demorava, Bebel demorava. Selistre demorava. Todos sem endereço. Apenas a noção da recuperação em sonhos após anos de distância. Arquivo indefinido que se abre independente da vontade. Um compartimento sensível, inexplorado e ocupado pela ilusão da eternidade. “Eternalegria” de antes em passeata durante as visões notívagas e errantes. Imagens que não sabemos ler.

Luiz tinha razão. Tanto nada acontece que nos enfiamos nas bibliotecas, nos teatros, nos labirintos da antiga sorte. Exilados na paz sem consentimento das lembranças porque ninguém se comunica, exceto rapidamente. É o nevoeiro da certeza quem contorna nossas vidas. A mesma vida que tem sido boa para os peixinhos do aquário. A mesma vida do homem que visita um museu.

No nevoeiro sentimos o vento glissando o piano da noite. Tontos de gim. Se ao menos vivéssemos todos juntos na mesma casa! Mas não. Apenas seguimos pela rua escrevendo com uma vontade intolerável de dançar e desfazer o mundo errado por breves instantes. Para tocar a altura dos astros com a melhor musicalidade já produzida.

A escuridão que precede o dia lembra uma mulher nua deitada num sofá negro. Será Bebel? A resposta que tanto buscamos une e separa. Só o vento sopra armando torvelinhos na areia. Só o cartaz é o mesmo em meio ao trânsito voraz.