Outubro de 2017. O Rio não é mais a cidade partida ou sitiada. Quem experimenta circular após as 22h observa ruas inertes, num silêncio tenso, pontuadas por poucos pedestres, que preferiam estar invisíveis e seguros fora das vistas do perigo em tocaia. É provável que, em certos territórios, existam mais balas zunindo como revoada de pássaros do que gente a passar. Por falar em pássaros, não se veem mais pássaros no Rio, talvez tenham sido exterminados pelas balas que buscam se aninhar na morte de qualquer desavisado. Executaram a liberdade à queima roupa e de olhos abertos. A única ilha noturna que resiste é a Lapa, em sua vocação boêmia de suicida. O Rio é um cadáver mutilado e perfurado que ainda respira, não por aparelhos, mas pelos sustos diários. Não, não estamos na UTI, pois os hospitais foram fechados para evitar os tiroteios. As balas, sempre elas. Bandoleiros armados, montados em motos, saqueiam os que se arriscam a beber nas calçadas em frentes aos botequins que nos dão identidade. Não temos mais identidade, foi roubada junto com a carteira e o celular. Somos todos prováveis indigentes ao dobrar a próxima esquina.
Atirar para matar. E matam policiais militares, que matam bandidos, que juntos matam civis e crianças. É o assassinato que se institucionaliza como elemento natural da vida urbana. Cada bairro, cada morro, empilha suas mortalhas sobre cadáveres fétidos que se decompõem ao Sol. A Cidade Maravilhosa rebaixada a mundo inferior, regida por um Hades que hoje é representado por fuzis de guerra. Nessa travessia, não nos restará nem mesmo uma moeda para Caronte.
Em nossa tragédia cotidiana, mentiroso é quem divide o mundo entre virtuosos e vilões. O que há é a desigualdade exposta, a falência social, a ignorância, o egoísmo, a caridade inútil, a fome, o relento dos desabrigados e a culpa que empurramos para o outro. Não aceitamos a inclusão, não toleramos que alguém mais pobre tenha um carro e é por isso que hoje disponibilizamos o nosso automóvel para fuga de algum marginal que executou um arrastão por onde passávamos. Somos vítimas porque algozes não saem impunes.
Atirar para matar. E matam policiais militares, que matam bandidos, que juntos matam civis e crianças. É o assassinato que se institucionaliza como elemento natural da vida urbana. Cada bairro, cada morro, empilha suas mortalhas sobre cadáveres fétidos que se decompõem ao Sol. A Cidade Maravilhosa rebaixada a mundo inferior, regida por um Hades que hoje é representado por fuzis de guerra. Nessa travessia, não nos restará nem mesmo uma moeda para Caronte.
Em nossa tragédia cotidiana, mentiroso é quem divide o mundo entre virtuosos e vilões. O que há é a desigualdade exposta, a falência social, a ignorância, o egoísmo, a caridade inútil, a fome, o relento dos desabrigados e a culpa que empurramos para o outro. Não aceitamos a inclusão, não toleramos que alguém mais pobre tenha um carro e é por isso que hoje disponibilizamos o nosso automóvel para fuga de algum marginal que executou um arrastão por onde passávamos. Somos vítimas porque algozes não saem impunes.