Quando terminar a zero hora...

Obstáculos de toda a espécie rodeiam a noite. A febre alta não seria aplacada por nenhum caminho espiritual. O médico e a carestia confinavam a dor no mesmo espaço. Sua cabeça fervia e brotava em seus olhos ardentes uma espécie de nuvem. O suor se acumulava como veneno no tecido da cama. A incapacidade evolutiva, imprópria para ser empregado pelo espírito, legava ao instinto um estado negativo. Despertaria à zero hora cheio de toxinas. As condições continuariam as mesmas: tolices aqueciam seu corpo doente metido entre sonhos confusos. Nada que se fixasse por longos anos como veículo da verdade reunir-lhe-ia os sucessos do dia. Pelo contrário, aviltaria o homem, formando verdadeiras imagens para substituir as impressões errôneas. É preciso restabelecer o desejo imerso na estupidez. Restaurar sobre o leito o corpo do desejo. Virar essa página com o corpo denso e reparado. Recusar a máquina que imprime idéias no cérebro vazio ocupando o lugar de uma educação reflexiva. Despertar de repente desse repouso forçado de domínio colorido. Nem todo impulso tem origem na vontade.

Em seus delírios ressurgiam ameaças e acusações. Há zero hora terminaria o seu tormento de obstáculo ao progresso. Possuía aversão ao modelo luminoso de grupos de espertalhões organizados como única consciência de mundo. Para domar o povo sem discernimento. Transformando-os em joguete de toda sorte de ilusões e vantagens na argumentação. Estava exposto. Febril. Subjugado a sociedade vil de seus interlocutores. Sentia ao morrer o quanto gastou em vida a própria noção de clareza. Empregando a alma emocional como produto de especulações consumistas. Queria restaurar a idéia de uma vida simples, mas o que fez durante todos esses anos foi vender. Envaidecido do seu conhecimento obtido pela farsa e persistência. Multidões haviam seguido suas ordens e orientações através de mensagens diárias. Mas tudo não passou de uma maneira inteligente de forçar o próprio enriquecimento com a missão das idéias. Como é fácil na decadência mental do povo, idiotizado pelos valores vazios das mensagens exclusivas, roubar-lhes a alma a preço de quase nada. Apenas pela digestão do passatempo. Fazer da virtude uma mercadoria barata exercitando a alma na ação perigosa do poder. Odiava o poder com o seu direito de proscrição da liberdade.

A liberdade só existe na mitologia e na mitomania.

Sabia agora que contra ele nenhum médico exercitaria sua fraternidade, pois em tudo havia se difundido um preço. Preço para extravio da alma. Tudo se vende e tudo é preciso comprar. Morreria como o retrato de um orgulho venenoso.