A INVENÇÃO DA VIDA
Para fugir da acusação de que apenas vocifero contra "o sistema", vejo em tudo manifestações de submissão dos seres humanos ao dinheiro e sou obcecado por teorias conspiratórias, vou contar uma breve história pessoal. Tem o pendor de se situar nesses espaços que parecem à parte do mundo lá fora, como são determinados momentos da nossa infância.
Corria...não, na verdade fluía o ano de 1970. Morávamos na Asa Norte de Brasília perto da casa dos meus tios José e Agostinha. Meu companheiro de brincadeiras era Dilermando, que obviamente até hoje chamamos apenas "Dilé", primo um ano mais velho e várias vezes mais habilidoso em quase tudo.
Naquele tempo, como às vezes fazem meus filhos atualmente, dormíamos na casa dos primos, com o legítimo desejo de aproveitar bem a noite em aventuras, conversas. De manhã, Dilé realizava o que, para mim, era uma proeza: o café composto apenas de dois pães com manteiga (não margarina) e chá mate. Seguindo rigorosamente um ritual que ele mesmo criara, cortava os pães de comprido em duas metades desiguais (uma sempre bem mais gorda que a outra), empastava-as de manteiga e as mergulhava no chá mate antes de se deliciar com o frugal e repetitivo desjejum.
Eu não cansava de admirá-lo por aquela invenção e pela autoconfiança em seguir desdobrando-a no tempo como uma marca muito pessoal.
É igualmente desse tempo o hábito que tínhamos em casa, e na de meus tios, de comer no lanche um sanduíche de nome "bauru", para quem não sabe composto de duas fatias de pão de forma, queijo, presunto e tomate. Aquilo era uma festa, com a vantagem de não ter nenhum Ronald McDonald por perto para encher o saco. Pois bem, me permitam incorrer só por um instante no velho hábito, e pagar outra dívida:
Devo a meu amigo Jorge Frederico uma observação que considero genial: a vida não foi desde sempre uma espécie de maldição ou cilada que armaram para apanhar os desavisados seres humanos. No meu entender, a invenção do Dilé comprova esse insight: o bom mesmo é quando podemos nos valer do que nos é mais próprio, tirando daí as riquezas que a vida está preparada (e esperando) para nos dar.