para José Lara, A VIDA QUE LHE VALE TANTO

A VIDA QUE LHE VALE TANTO

um conto Baltazar Gonçalves

Para um filho digerir o luto do seu pai nenhum espelho bastaria. Retive no tempo a busca da solidão e encontro-me em novos lugares de sentido. Sei de ouvir, no oitavo dia há descanso. Resolvi sair com meu incômodo e atravessar para a margem em que ele sem pressa ultrapassara.

Tenho a chave na mão. Piso um tapete cinza. No detalhe grifado em vermelho no capacho, o nome do hotel. Ópio, cannabis, poesia. Nada que distraia me atrai.

Estou mais uma vez diante da porta, abrir é uma escolha. Detenho o passo, toda minha vida se afasta de mim na frente dessa porta. Quero passar.

À esquerda, são três portas e uma janela que dá vista para o centro da cidade. Chove. A cidade murmura o desejo de passar por essas portas. São amantes famintos e operários cansados de suas esposas infelizes, donas de suas casas arrumadas, sem maquiagem e outros desassossegados e outros tantos viciados que fazem desse edifício o refúgio inútil para o seu descanso inválido.

Quem está aí?

Nos quartos há movimento, eu espero. Depois abro a porta e entro. Chuveiro, cama, sono. Nada que alivia me distrai. Estanco mais que um minuto de costas para a porta aberta. A cidade do lado de fora é uma tempestade de histórias. Minha história é emprestada, trago minha casa nas costas. O passado é um crustáceo parasita na memória. Eu ando de vértice em vértice nesse triângulo obsessivo, Sodoma em chama. Olho para trás quando a porta bate com a violência da corrente de ar. E é no escuro que vejo meu rosto refletido no espelho quando dou o primeiro passo. Meu rosto espelhado fixado do lado de uma cômoda patinada em tons de saudade. Eu tinha mesmo esse rosto? Em qual dos quartos iguais a esse ficou esquecida a máscara a que tinha me acostumado?

Em cada quarto de hotel perdi o melhor pedaço de mim? Eu luto, mas não vejo razão para a busca. Para um filho digerir o luto do seu pai nenhum espelho basta.

Acendo a luz, no painel sobre a cama lê-se “vídeo”, “rádio” e “ar”. Faço um inventário rápido: toalha branca, sabonete, sache de shampoo, lençóis e paredes brancas onde uma reprodução desbotada do ‘beijo’ de Paul Klee me lembra que sou operário, amante faminto cansado de minha esposa infeliz dona de sua casa arrumada sem maquiagem. Mais um desassossegados como tantos outros viciados que fazem desse edifício o refúgio inútil para descanso inválido.

Na parede que parece inacabada sob essa tênue luz rabisco o arremedo de um poema

Nos destroços onde esteve

encontrei abrigo,

também o retrato da minha vida

na parede inacabada

desses versos demolidos.

Tenho encontros com ausências. “Não preciso de nada” – minto. “Logo um poema nascerá”- continuo mentindo. Onde estão minhas irmãs? Minha mãe, onde está?

O vapor da água preenche o vazio, mal enxergo a pia. Faço a barba pensando que dentro da cada fino fio de vida existe o vazio. O vapor ganha densidade luminosa, decido é hora de dormir. Dormir para acordar e no sonho secar meu corpo e contar nele os territórios conquistados.

Meu peito se abre em fôlego de trincheira. Nos alvéolos umedecidos quilômetros de sal não extraídos. Amei tardiamente meu pai. Eu evaporo. Para o vazio, eu evaporo.

Retenho o tempo na toalha, no tecido meus pensamentos são marcar de outro sudário. Quero encontra-me esquecido no fosso desses sete dias de luto em que minha alma sem descanso procura asilo. Respiro profundamente. E revejo meus olhos refletidos num quase de superfície limpa. Um calafrio atravessa meu corpo, esses olhos são os olhos do meu pai.

Onde estão meus irmãos? Meu pai, onde está?

Já não sinto a umidade que a toalha reteve. Aqueles olhos, como se postos na cruz de Cristo, são os olhos da cidade. Sobre mim, um olhar sobeja intenso profundo e despretensioso amor. Chego mais perto do espelho, com a mão desembaço a imagem na esperança de ver ali o homem que ele foi e não eu. Mas ao fim do gesto, apago a esperança descobrindo meu retrato, esse rosto envelhecido que me sorri do vidro. São os olhos que fitaram a porta, o tapete e o espelho.

Mas há uma diferença no brilho do cristal polido. É um lugar. Um lugar conhecido, um lugar dentro do vazio da superfície no espelho. É o lugar aonde o homem a quem vim procurar foi viver a vida que lhe vale tanto.

*

*

Baltazar Gonçalves

in memória de José Lara Gonçalves, meu pai.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 25/10/2017
Reeditado em 27/06/2018
Código do texto: T6152735
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.