YUJO "O PACIFICADOR"
Um vento gelado ,na boca da noite, mastigava o canto das últimas curucacas à caminho das araucárias.
O pequeno Yujo iniciava o rotineiro percurso das tardes com destino à casa da avó,a quem fazia companhia. Tremendo de frio, pára instintivamente no alto da colina.
Extasiado, espia o vale agasalhado pelo manto de neblina e fumaça. Aos seus ouvidos chegam ecos de gargalhadas, batidas de mãos e algumas sobras do refrão entoado pelos baianos num rítmo de capoeira.
_ É na casa de Antero!...Pensa com seus botões.
O esbôço de um sorriso desenha-se nos lábios arroxeados pelo frio.
Muda a trajetória.
Pensamentos povoam-lhe a cabeça.Fala consigo mesmo:
Ah!...Na casa da bapka não é bom,"num gosto".Tôda noite a mesma ladaínha...
_"De piá marrôto, Deus num gosta...Tem que réza térço, pede perdom a Deus pelas marrotezas". E já,já pro cama...Ouviu bem Yujô ?!
Carecia de novos ares, de gente decontraída,alegre...Sabia,entretanto,que as familias não se davam muito bem, ainda que não entendesse as razões,percebia o distanciamento imperante entre seus pais, Antero e os agregados.
Algo incompreensível para sua ingenuidade de criança.
Antero, caboclo bem situado na vida, era proprietário de quase toda a extensão do vale. Uma área rica em madeira de lei,araucárias e erva mate.
A necessidade de mão de obra obrigou-lhe a instalar uma pequena vila de servidores ao redor do casarão.Dentre êstes,alguns baianos.
Uma familia composta por oito pessoas migradas para o Sul em busca de trabalho.
Encontraram nas terras do rico fazendeiro ,um lugar ideal para viver.Trouxeram consigo, costumes, temperos, gingados e crendices de sua região, que foram aos poucos ganhando o gosto dos demais agregados.
Têm verdadeiro horror ao inverno sulino .Assim,em noites geladas do vale ,a unica maneira que encontram para combater o frio é gingando capoeira ao redor de fogueiras,cantando e ingerindo a " canha " preparada ali mesmo na sede da fazenda.
No topo da colina,semeadas entre imensos campos de trigo e cevada,erguem-se as casas dos imigrantes eslavos.
Trabalhadores incansaveis,bons festeiros nas ocasioes certas mas,levando uma vida em separado.
É como se duas facções imperassem por ali: O povo do vale e...O a "povo" da colina.
Estão sempre em picuínhas.Fatos corriqueiros e insignificantes sempre geram conflitos entre ambas.
A gota d ´agua transbordara o balde por ocasião da ultima festa de casamento ocorrida na colina.Uma pequena parada na porteira que divide as terras e a comitiva com suas carruagens enfeitadas aproveitou para dar de beber aos animais.
Sanfonas e rabecas abriram-se ao lado da ponte e a festa correu solta pela coxilha.
Subitamente,um foguetório fora direcionado em direção à casa da fazenda e nem o padre polonês , integrante dos convidados,foi capaz de conter os ânimos.
Antero,por sua vez,não deixou por menos e, ao seu modo,encarou o grupo para resolver a pendenga.
Yujo connece bem estes episódios e apesar de tudo, sente-se atraido pela gente do vale.O jeito simples e acolhedor daquela comunidade lhe fascina.
Está quase chegando.
As chamas da fogueira refletem-se agora em seus olhinhos safirados.
A cantoria, as batidas de mãos,os sons abafados dos berimbaus...Tudo lhe parece mágico.Espia o céu e bebe um punhado de estrelas num suspiro emocionado.
Aproxima-se com certa timidez,desconfiado,medroso... Com ares de surpresa é recebido pelos baianos.Êstes,animados o cumprimentam.O garotinho põe-se admirado diante daquêles corpos morenos reluzindo à claridade das chamas.
Sorri amistosamente e,contente, toma o rumo do casarão.Empurra lentamente a porta e o calor da cozinha de chão batido o acolhe.Em torno do fogo encontram-se os camaradas de Antero e dona Lucinda ,a esposa,todos atentos às historias do fazendeiro.
Boi-ta-tás ,lobisomens e almas penadas vão desfilando na voz aveludada do velho senhor.
Uma ligeira pausa e Antero,voltando-se para o recém chegado o saúda num tom festivo.
_Mas olha aí , minha Lucinda !...Veja só quem se "aprochega"!... O nosso "zoínho de ganso"...
Mas o que faz por aqui nestas horas mortas,piazito?
Yujo,com aquela entonação de polaquinho, rapidamente inventa uma justificativa.
_Senhor "Anterro"...o "Tata e a mama" viajarram e antes de sair me autorrizarram a passar a noite aqui em sua casa.
O velho percebe a mentira,mas pensa ter chegado a hora de dar um basta nas picuínhas que imperam entre as familias.Será uma boa oportunidade de lhes provar não serem " devoradores de criançinhas" e assim acabar de vez com os entraves à política da boa vizinhança.Fingindo acreditar nas palavras do menino,pergunta-lhe.
_Mas, papai e mamãe, viajaram para onde mesmo, fio ?
_ Polonia ! Seu "Antérro" e de "caroça", responde Yujo, suprimindo e acrescentando "erres" na pronúncia e piscando aceleradamente .Fruto de um "tique nervoso" que lhe acomete quando mente.
_Ah !...pra Polonia, ora vejam ...E ,"de caroça" ! muito bem ! Diz o fazendeiro.
[ Caem todos em sonoras gargalhadas ]
Antero aproxima-se do pequeno Yujo e o encosta junto ao seu corpo.O garotinho franzino está friorento, arrepiado...Nos pés, enrijecidos de frio, a única proteção vem de um chinelo velho.
_"Cinda !...",diz Antero à esposa em tom autoritário:
Arranja alguma coisa pra aquecer a "pãnçinha" do nosso "Zoínho de ganso".Lucinda surge rapidamente trazendo uma caneca de ágata com leite quente .Uma generosa fatia de bolo de fubá lhe é servida. Yujo os devora com apetite de um leão.O conversê prosegue animado.Antero falando de suas almas penadas e Yujo ,assustado ,arregalando os olhos à cada vez que o vento provoca mais uma batida na folha entreaberta da janela.
Tudo por ali é novidade !...Em nada se parece com a casa da "bapka", e aquela sopinha rala de beterraba "pra evitar pesadêlos", a reza do rosário e a interminável ladaínha de todas as noites a lhe ensinar como tornar-se um bom menino.
Olha feliz para figura de Antero.Aquele senhor de cabelos grisalhos,dentes amarelados voz meio rouca e pausada, lhe encanta.O velhote lhe parece agora a figura de um avô dizendo num tom de feitiçaria.
_" Fumaça pra lá,Santinha pra cá ! "...
E o tufo de fumaça toma o rumo que lhe é ordenado .
Yujo ri e, agachado bem proximo à fogueira, provoca o riso nos agregados quando Antero lhe repreende.
_Zoínho de ganso, afaste-se um tiquinho. Senão... Vai "sapecar os baguinhos" E carinhosamente afaga as costelas ossudas do garoto.
A noite vai caindo e o pequeno Yujo adormece recostado ao joelho de Antero.Este,muito sério e compenetrado,tomando a criança nos braços,lembra a Lucinda a necessidade de agasalhá-lo muito bem.
_Veja só ! diz a esposa: O frio da noite acaba de criar uma crosta de gelo na água do balde.
Tá geando forte lá fora ! profere Lucinda, arrepiada.
Prestativa, a dona da casa retira de um guarda roupa, alguns agasalhos que pertenceram a única filha que tiveram e agora,casada,vivendo numa cidade distante.
Vestem o menino com um pesado casaco cinza, todo cinturado,metem-lhe manta e gôrro vermelhos na cabeça e os pés ,ainda frios,ganham dois pares de meias e um sapato quente surgido entre os guardados.Deitam-lhe na cama e o encobrem com acolchoado de penas.Permanecem ali por alguns instantes a observa-lo com ternura de pais depois, lentamente retiram-se do quarto.
************************************************************
Amanhece...
Yujo desperta e cai na realidade.Percebe a dimensão de seu ato e não crê num perdão pelo que fez.
Joga para o lado a pesada coberta e vestido como se encontra,toma o rumo da porta.Lucinda e Antero lhe observam pela fresta da janela.O campo transformara-se num tapete branco de gelo e Yujo, com aquele agasalho cinza e vermelho , parece um personagem surreal bordando na geada, as paralelas de seus pésinhos.
Sufocado,alcança o topo da colina ao mesmo tempo em que a bapka gorducha desembarca bruscamente de sua charrete.
Ofegante,nariz vermelho de frio, chicote em punho,vem tomar satisfação do porquê da ausência do neto em sua casa na noite anterior.Adentram ,ambos, na cozinha ampla onde ,ao redor da mesa, os demais tomam o café da manhã.Antes que lhe perguntem,Yujo tenta tomar a iniciativa de explicar-se:
Consegue tão somente pronunciar a palavra "Eu"...
E todos caem num riso compulsivo.Um engasga-se com a fatia de broa de centeio,outro,acaba cuspindo o gole de café que acabara de ingerir e ninguém mais consegue se conter diante daquela figura bizarra em que transformaram o piazito.
A bapka, tenta manter o ar de austeridade e rigidez.
Tentativa inútil.
De súbito,despenca numa gargalhada sonora,descompensada...Com o cabo do chicote soca o assoalho enquanto ri sem parar. Uma crise de tosse lhe acomete ,fazendo-lhe arfar a generosidade dos seios que mostram-se prestes a escapar pelo decote do casaco.Passada a crise,tudo é explicado e a familia admite que o pessoal do vale havia tratado o menino de maneira muito carinhosa.
_Éh ! Penso que estamos errados,precisamos acabar com as desavenças,ordena o dono da casa .
Afinal, somos vizinhos e um dia poderemos precisar um do outro.
Todos lhe acatam a ideia. Haviam "carneado" um leitão e vistosas fatias de pernil foram enviadas a Antero com o seguinte recado."Isto é para vocês aprenderem como tempera-se um pernil suíno.Coisa que só o nosso povo sabe fazer bem feito."
Ao receber o presente,Lucinda que acabara de retirar da fornalha um bolo de fubá,cheirando a sementes de funcho,sorri , embrulha-o num pano de copa e o envia com outro recado:
"Isto é para o povo da colina aprender a comer coisa que presta".
Os "recadinhos", que provocaram risos em ambos, serviram para descontrair os teimosos.
A partir dai,os ânimos serenaram entre os habitantes de vale e colina.Na primeira festa de casamento nos morros de trigo,entre uma "Kolomeica" polonesa e outra , podia-se ouvir os acordes dos berimbaus,as batidas de mãos e os gingados morenos do vale ao refrão de :
"Ai bananera, ai bananáh...A fôia da bananera tá querendo amarelah..."
Yujo,apertado numa gravatinha borboleta,bebia gasosa vermelha no gargalo da garrafa.Rebolava e sapateava feito dançarino, no celeiro transformado em salão de festas.
Sob a fileira de bandeirinhas coloridas,flores de crepom e galhos de palmeira, Zoínho de ganso era todo felicidade.Fitava com ternura as figuras de Lucinda , Antero e os baianos.Mal podia imaginar que a inocência de sua alma de criança havia pacificado aquela gente briguenta...Não fazia idéia de que naquela noite gelada,um anjo mudara sua rota, incumbindo-lhe de acabar de vez com o preconceito naquele fim de mundo.
Texto reeditado
Preservados os comentários ao texto anterior:
Comentários
06/04/2012 18:05 - jorê
olá poeta! Caro Joel! É como se estivesse lá ao lado do menino "Yujo", a percorrer as colinas do seu Paraná gelado, e com ele fosse ao abrigo dos amigos que o receberam... É impressionante a felicidade com a qual você nos relata suas estórias comoventes, você um perfeccionista, não esquece de nada... MARAVILHA ! ATÉ À PRÓXIMA ESTÓRIA. SAÚDE E FIQUE COM DEUS! ABÇS. JORÊ
15/02/2012 11:57 - Carlos Celso CARCEL
Olá, Joel! primeirqamente quero dizer que admiro o seu bairrismo "iratiense", também sou apaisonado pelo meu torrão, depois quero dizer que adorei esse texto narrativo de uma pacificação espontânea, onde a ação de Deus usou uma pequena criança, parabens e aplausos; se puder, leia-me em FESTA NA NATUREZA (pág. 1) e SÓ ASSIM (pág. 2); um abç
.
12/02/2012 20:54 - jorê
olá Joel!Irati, deve orgulhar-se do escritor e poeta que tem...Você, com as belezas de suas estórias, nos enternecem a todos os que temos a felicidade de lê-las! Muito bom ler você, Suas estórias são verdadeiras aulas, de costumes e hábitos de nossos isrmãos aí do sul do Brasil... è um prazer ler suas estórias... Abçs. jorê
12/02/2012 02:56 - Chico Chicão
Meu caro Joel do meu Paraná querido.Já li este texto e releio-o como se fora a primeira vez.Lindo...lindo...lindo!!! Este texto merece estar nos Anais*Histórias de Irati-Paisagens e Sua Gente.*É emocionante a história deste Anjo Gelado.Um texto que saúda a Vida e como viver melhor.Obrigado,Joel.Agora,a foto final me despejou lembrancas do meu Vale e a Mantiqueira,em olhos marejados. Fique na paz!
12/02/2012 01:27 - Maria Dilma Ponte de Brito
Como sempre o texto é rico em detalhes. Muito bem escrito. Parabéns!
12/11/2011 06:50 - Chico Chicão
*Água de beber,bica no quintal,sede de viver tudo*-M.Nascimento E não é verdade.Esta sede de viver tudo sem medo de ser feliz.Lindo conto/lembrancas.Lindas imagens de preconceitos guardados em móveis inúteis.Lindo conto/lembrancas.Fico feliz em te ler.Fique na paz!
22/02/2010 21:14 - DOCE VAL
Meu amigo JOEL,lendo seu conto , que de tão verdadeiro ,quase pude ver as cenas ,que você os descreveu de um modo terno e bonito, e me lembrei da minha infância ,no interior da BAHIA, onde era comum ,aparecerem sempre famílias de mascates, e do preconceito de muitos contra eles...Estive viajando de férias, só voltei ontem ...Abraços.
15/02/2010 14:35 - Dante Marcucci
IMPOSSÍVEL NÃO GOSTAR DO QUE ESCREVES! Apesar da ser uma belíssima história, comovente, nã verdade não importa...é a forma de contar que cativa o leitor. Parabens! Um abraço de gaucho, ao som das curucacas.
14/02/2010 07:37 - Helena da Rosa
Nossa, Joel! Lindo demais este conto. É por este motivo que sou sua fã! Aqui neste teu cantinho, sempre encontro coisas linda, principalmente, ternura e paz. Parabéns, poeta! Tenhya um lindo dia,bjs helena
12/02/2010 23:16 - Rejane Chica
De arrepiar! Lindo e tocante.Tomara fosse verdade isso! um abração e tudo de bom no carnaval, piulando ou descansando, que é o meu caso...De folia, nem pela tv.Só as folias dos dois gurizinhos, Neno e Gui,(agora dormindo) que estão por aqui...chica
12/02/2010 21:49 -
Olha me fez chorar, nossa que conto poeta, não sei se é verdadeiro, mas gostaria que fosse, e que se repetisse muitas e muitas vezes, parabéns mil vezes, beijos Luconi
11/02/2010 23:16 - Anita D Cambuim
Termino de ler seu conto, arrepiada. Quantas vezes um único gesto pode acabar com richas de anos. Muito bom o seu texto. Parabéns.
11/02/2010 23:10 - Norma Suely Facchinetti
Um belo tema, um belo conto! E você conta com seu talento. Abraços, amigo.
11/02/2010 22:55 - Lilian Reinhardt
Beleza imensa a sua narrativa, um texto rico em vivencias a transcender com sua arte, encanta-nos essas raízes que bem conhecemos cá dessa nossa terra, mas, que nos diz da alma universal presente em cada um de nós. Parabéns poeta! abraços
11/02/2010 22:55 - Malgaxe
Gostei, prende a atenção querer saber o destino do rapazinho, e é assim o preconceito racial, vive de momentos de trégua como esta descrita aqui, mas bem sabemos que sua completa extinção só é respeitada pela força da lei, porque intimamente existe em vários corações. Na minha modesta opinião a discriminação existem nas raças, religiões, opções sexuais em toda parte, é engano pensar que isto não existe mais. Belo texto, com o discernimento de sempre. Parabens Grande abraço.
Um vento gelado ,na boca da noite, mastigava o canto das últimas curucacas à caminho das araucárias.
O pequeno Yujo iniciava o rotineiro percurso das tardes com destino à casa da avó,a quem fazia companhia. Tremendo de frio, pára instintivamente no alto da colina.
Extasiado, espia o vale agasalhado pelo manto de neblina e fumaça. Aos seus ouvidos chegam ecos de gargalhadas, batidas de mãos e algumas sobras do refrão entoado pelos baianos num rítmo de capoeira.
_ É na casa de Antero!...Pensa com seus botões.
O esbôço de um sorriso desenha-se nos lábios arroxeados pelo frio.
Muda a trajetória.
Pensamentos povoam-lhe a cabeça.Fala consigo mesmo:
Ah!...Na casa da bapka não é bom,"num gosto".Tôda noite a mesma ladaínha...
_"De piá marrôto, Deus num gosta...Tem que réza térço, pede perdom a Deus pelas marrotezas". E já,já pro cama...Ouviu bem Yujô ?!
Carecia de novos ares, de gente decontraída,alegre...Sabia,entretanto,que as familias não se davam muito bem, ainda que não entendesse as razões,percebia o distanciamento imperante entre seus pais, Antero e os agregados.
Algo incompreensível para sua ingenuidade de criança.
Antero, caboclo bem situado na vida, era proprietário de quase toda a extensão do vale. Uma área rica em madeira de lei,araucárias e erva mate.
A necessidade de mão de obra obrigou-lhe a instalar uma pequena vila de servidores ao redor do casarão.Dentre êstes,alguns baianos.
Uma familia composta por oito pessoas migradas para o Sul em busca de trabalho.
Encontraram nas terras do rico fazendeiro ,um lugar ideal para viver.Trouxeram consigo, costumes, temperos, gingados e crendices de sua região, que foram aos poucos ganhando o gosto dos demais agregados.
Têm verdadeiro horror ao inverno sulino .Assim,em noites geladas do vale ,a unica maneira que encontram para combater o frio é gingando capoeira ao redor de fogueiras,cantando e ingerindo a " canha " preparada ali mesmo na sede da fazenda.
No topo da colina,semeadas entre imensos campos de trigo e cevada,erguem-se as casas dos imigrantes eslavos.
Trabalhadores incansaveis,bons festeiros nas ocasioes certas mas,levando uma vida em separado.
É como se duas facções imperassem por ali: O povo do vale e...O a "povo" da colina.
Estão sempre em picuínhas.Fatos corriqueiros e insignificantes sempre geram conflitos entre ambas.
A gota d ´agua transbordara o balde por ocasião da ultima festa de casamento ocorrida na colina.Uma pequena parada na porteira que divide as terras e a comitiva com suas carruagens enfeitadas aproveitou para dar de beber aos animais.
Sanfonas e rabecas abriram-se ao lado da ponte e a festa correu solta pela coxilha.
Subitamente,um foguetório fora direcionado em direção à casa da fazenda e nem o padre polonês , integrante dos convidados,foi capaz de conter os ânimos.
Antero,por sua vez,não deixou por menos e, ao seu modo,encarou o grupo para resolver a pendenga.
Yujo connece bem estes episódios e apesar de tudo, sente-se atraido pela gente do vale.O jeito simples e acolhedor daquela comunidade lhe fascina.
Está quase chegando.
As chamas da fogueira refletem-se agora em seus olhinhos safirados.
A cantoria, as batidas de mãos,os sons abafados dos berimbaus...Tudo lhe parece mágico.Espia o céu e bebe um punhado de estrelas num suspiro emocionado.
Aproxima-se com certa timidez,desconfiado,medroso... Com ares de surpresa é recebido pelos baianos.Êstes,animados o cumprimentam.O garotinho põe-se admirado diante daquêles corpos morenos reluzindo à claridade das chamas.
Sorri amistosamente e,contente, toma o rumo do casarão.Empurra lentamente a porta e o calor da cozinha de chão batido o acolhe.Em torno do fogo encontram-se os camaradas de Antero e dona Lucinda ,a esposa,todos atentos às historias do fazendeiro.
Boi-ta-tás ,lobisomens e almas penadas vão desfilando na voz aveludada do velho senhor.
Uma ligeira pausa e Antero,voltando-se para o recém chegado o saúda num tom festivo.
_Mas olha aí , minha Lucinda !...Veja só quem se "aprochega"!... O nosso "zoínho de ganso"...
Mas o que faz por aqui nestas horas mortas,piazito?
Yujo,com aquela entonação de polaquinho, rapidamente inventa uma justificativa.
_Senhor "Anterro"...o "Tata e a mama" viajarram e antes de sair me autorrizarram a passar a noite aqui em sua casa.
O velho percebe a mentira,mas pensa ter chegado a hora de dar um basta nas picuínhas que imperam entre as familias.Será uma boa oportunidade de lhes provar não serem " devoradores de criançinhas" e assim acabar de vez com os entraves à política da boa vizinhança.Fingindo acreditar nas palavras do menino,pergunta-lhe.
_Mas, papai e mamãe, viajaram para onde mesmo, fio ?
_ Polonia ! Seu "Antérro" e de "caroça", responde Yujo, suprimindo e acrescentando "erres" na pronúncia e piscando aceleradamente .Fruto de um "tique nervoso" que lhe acomete quando mente.
_Ah !...pra Polonia, ora vejam ...E ,"de caroça" ! muito bem ! Diz o fazendeiro.
[ Caem todos em sonoras gargalhadas ]
Antero aproxima-se do pequeno Yujo e o encosta junto ao seu corpo.O garotinho franzino está friorento, arrepiado...Nos pés, enrijecidos de frio, a única proteção vem de um chinelo velho.
_"Cinda !...",diz Antero à esposa em tom autoritário:
Arranja alguma coisa pra aquecer a "pãnçinha" do nosso "Zoínho de ganso".Lucinda surge rapidamente trazendo uma caneca de ágata com leite quente .Uma generosa fatia de bolo de fubá lhe é servida. Yujo os devora com apetite de um leão.O conversê prosegue animado.Antero falando de suas almas penadas e Yujo ,assustado ,arregalando os olhos à cada vez que o vento provoca mais uma batida na folha entreaberta da janela.
Tudo por ali é novidade !...Em nada se parece com a casa da "bapka", e aquela sopinha rala de beterraba "pra evitar pesadêlos", a reza do rosário e a interminável ladaínha de todas as noites a lhe ensinar como tornar-se um bom menino.
Olha feliz para figura de Antero.Aquele senhor de cabelos grisalhos,dentes amarelados voz meio rouca e pausada, lhe encanta.O velhote lhe parece agora a figura de um avô dizendo num tom de feitiçaria.
_" Fumaça pra lá,Santinha pra cá ! "...
E o tufo de fumaça toma o rumo que lhe é ordenado .
Yujo ri e, agachado bem proximo à fogueira, provoca o riso nos agregados quando Antero lhe repreende.
_Zoínho de ganso, afaste-se um tiquinho. Senão... Vai "sapecar os baguinhos" E carinhosamente afaga as costelas ossudas do garoto.
A noite vai caindo e o pequeno Yujo adormece recostado ao joelho de Antero.Este,muito sério e compenetrado,tomando a criança nos braços,lembra a Lucinda a necessidade de agasalhá-lo muito bem.
_Veja só ! diz a esposa: O frio da noite acaba de criar uma crosta de gelo na água do balde.
Tá geando forte lá fora ! profere Lucinda, arrepiada.
Prestativa, a dona da casa retira de um guarda roupa, alguns agasalhos que pertenceram a única filha que tiveram e agora,casada,vivendo numa cidade distante.
Vestem o menino com um pesado casaco cinza, todo cinturado,metem-lhe manta e gôrro vermelhos na cabeça e os pés ,ainda frios,ganham dois pares de meias e um sapato quente surgido entre os guardados.Deitam-lhe na cama e o encobrem com acolchoado de penas.Permanecem ali por alguns instantes a observa-lo com ternura de pais depois, lentamente retiram-se do quarto.
************************************************************
Amanhece...
Yujo desperta e cai na realidade.Percebe a dimensão de seu ato e não crê num perdão pelo que fez.
Joga para o lado a pesada coberta e vestido como se encontra,toma o rumo da porta.Lucinda e Antero lhe observam pela fresta da janela.O campo transformara-se num tapete branco de gelo e Yujo, com aquele agasalho cinza e vermelho , parece um personagem surreal bordando na geada, as paralelas de seus pésinhos.
Sufocado,alcança o topo da colina ao mesmo tempo em que a bapka gorducha desembarca bruscamente de sua charrete.
Ofegante,nariz vermelho de frio, chicote em punho,vem tomar satisfação do porquê da ausência do neto em sua casa na noite anterior.Adentram ,ambos, na cozinha ampla onde ,ao redor da mesa, os demais tomam o café da manhã.Antes que lhe perguntem,Yujo tenta tomar a iniciativa de explicar-se:
Consegue tão somente pronunciar a palavra "Eu"...
E todos caem num riso compulsivo.Um engasga-se com a fatia de broa de centeio,outro,acaba cuspindo o gole de café que acabara de ingerir e ninguém mais consegue se conter diante daquela figura bizarra em que transformaram o piazito.
A bapka, tenta manter o ar de austeridade e rigidez.
Tentativa inútil.
De súbito,despenca numa gargalhada sonora,descompensada...Com o cabo do chicote soca o assoalho enquanto ri sem parar. Uma crise de tosse lhe acomete ,fazendo-lhe arfar a generosidade dos seios que mostram-se prestes a escapar pelo decote do casaco.Passada a crise,tudo é explicado e a familia admite que o pessoal do vale havia tratado o menino de maneira muito carinhosa.
_Éh ! Penso que estamos errados,precisamos acabar com as desavenças,ordena o dono da casa .
Afinal, somos vizinhos e um dia poderemos precisar um do outro.
Todos lhe acatam a ideia. Haviam "carneado" um leitão e vistosas fatias de pernil foram enviadas a Antero com o seguinte recado."Isto é para vocês aprenderem como tempera-se um pernil suíno.Coisa que só o nosso povo sabe fazer bem feito."
Ao receber o presente,Lucinda que acabara de retirar da fornalha um bolo de fubá,cheirando a sementes de funcho,sorri , embrulha-o num pano de copa e o envia com outro recado:
"Isto é para o povo da colina aprender a comer coisa que presta".
Os "recadinhos", que provocaram risos em ambos, serviram para descontrair os teimosos.
A partir dai,os ânimos serenaram entre os habitantes de vale e colina.Na primeira festa de casamento nos morros de trigo,entre uma "Kolomeica" polonesa e outra , podia-se ouvir os acordes dos berimbaus,as batidas de mãos e os gingados morenos do vale ao refrão de :
"Ai bananera, ai bananáh...A fôia da bananera tá querendo amarelah..."
Yujo,apertado numa gravatinha borboleta,bebia gasosa vermelha no gargalo da garrafa.Rebolava e sapateava feito dançarino, no celeiro transformado em salão de festas.
Sob a fileira de bandeirinhas coloridas,flores de crepom e galhos de palmeira, Zoínho de ganso era todo felicidade.Fitava com ternura as figuras de Lucinda , Antero e os baianos.Mal podia imaginar que a inocência de sua alma de criança havia pacificado aquela gente briguenta...Não fazia idéia de que naquela noite gelada,um anjo mudara sua rota, incumbindo-lhe de acabar de vez com o preconceito naquele fim de mundo.
Texto reeditado
Preservados os comentários ao texto anterior:
Comentários
06/04/2012 18:05 - jorê
olá poeta! Caro Joel! É como se estivesse lá ao lado do menino "Yujo", a percorrer as colinas do seu Paraná gelado, e com ele fosse ao abrigo dos amigos que o receberam... É impressionante a felicidade com a qual você nos relata suas estórias comoventes, você um perfeccionista, não esquece de nada... MARAVILHA ! ATÉ À PRÓXIMA ESTÓRIA. SAÚDE E FIQUE COM DEUS! ABÇS. JORÊ
15/02/2012 11:57 - Carlos Celso CARCEL
Olá, Joel! primeirqamente quero dizer que admiro o seu bairrismo "iratiense", também sou apaisonado pelo meu torrão, depois quero dizer que adorei esse texto narrativo de uma pacificação espontânea, onde a ação de Deus usou uma pequena criança, parabens e aplausos; se puder, leia-me em FESTA NA NATUREZA (pág. 1) e SÓ ASSIM (pág. 2); um abç
.
12/02/2012 20:54 - jorê
olá Joel!Irati, deve orgulhar-se do escritor e poeta que tem...Você, com as belezas de suas estórias, nos enternecem a todos os que temos a felicidade de lê-las! Muito bom ler você, Suas estórias são verdadeiras aulas, de costumes e hábitos de nossos isrmãos aí do sul do Brasil... è um prazer ler suas estórias... Abçs. jorê
12/02/2012 02:56 - Chico Chicão
Meu caro Joel do meu Paraná querido.Já li este texto e releio-o como se fora a primeira vez.Lindo...lindo...lindo!!! Este texto merece estar nos Anais*Histórias de Irati-Paisagens e Sua Gente.*É emocionante a história deste Anjo Gelado.Um texto que saúda a Vida e como viver melhor.Obrigado,Joel.Agora,a foto final me despejou lembrancas do meu Vale e a Mantiqueira,em olhos marejados. Fique na paz!
12/02/2012 01:27 - Maria Dilma Ponte de Brito
Como sempre o texto é rico em detalhes. Muito bem escrito. Parabéns!
12/11/2011 06:50 - Chico Chicão
*Água de beber,bica no quintal,sede de viver tudo*-M.Nascimento E não é verdade.Esta sede de viver tudo sem medo de ser feliz.Lindo conto/lembrancas.Lindas imagens de preconceitos guardados em móveis inúteis.Lindo conto/lembrancas.Fico feliz em te ler.Fique na paz!
22/02/2010 21:14 - DOCE VAL
Meu amigo JOEL,lendo seu conto , que de tão verdadeiro ,quase pude ver as cenas ,que você os descreveu de um modo terno e bonito, e me lembrei da minha infância ,no interior da BAHIA, onde era comum ,aparecerem sempre famílias de mascates, e do preconceito de muitos contra eles...Estive viajando de férias, só voltei ontem ...Abraços.
15/02/2010 14:35 - Dante Marcucci
IMPOSSÍVEL NÃO GOSTAR DO QUE ESCREVES! Apesar da ser uma belíssima história, comovente, nã verdade não importa...é a forma de contar que cativa o leitor. Parabens! Um abraço de gaucho, ao som das curucacas.
14/02/2010 07:37 - Helena da Rosa
Nossa, Joel! Lindo demais este conto. É por este motivo que sou sua fã! Aqui neste teu cantinho, sempre encontro coisas linda, principalmente, ternura e paz. Parabéns, poeta! Tenhya um lindo dia,bjs helena
12/02/2010 23:16 - Rejane Chica
De arrepiar! Lindo e tocante.Tomara fosse verdade isso! um abração e tudo de bom no carnaval, piulando ou descansando, que é o meu caso...De folia, nem pela tv.Só as folias dos dois gurizinhos, Neno e Gui,(agora dormindo) que estão por aqui...chica
12/02/2010 21:49 -
Olha me fez chorar, nossa que conto poeta, não sei se é verdadeiro, mas gostaria que fosse, e que se repetisse muitas e muitas vezes, parabéns mil vezes, beijos Luconi
11/02/2010 23:16 - Anita D Cambuim
Termino de ler seu conto, arrepiada. Quantas vezes um único gesto pode acabar com richas de anos. Muito bom o seu texto. Parabéns.
11/02/2010 23:10 - Norma Suely Facchinetti
Um belo tema, um belo conto! E você conta com seu talento. Abraços, amigo.
11/02/2010 22:55 - Lilian Reinhardt
Beleza imensa a sua narrativa, um texto rico em vivencias a transcender com sua arte, encanta-nos essas raízes que bem conhecemos cá dessa nossa terra, mas, que nos diz da alma universal presente em cada um de nós. Parabéns poeta! abraços
11/02/2010 22:55 - Malgaxe
Gostei, prende a atenção querer saber o destino do rapazinho, e é assim o preconceito racial, vive de momentos de trégua como esta descrita aqui, mas bem sabemos que sua completa extinção só é respeitada pela força da lei, porque intimamente existe em vários corações. Na minha modesta opinião a discriminação existem nas raças, religiões, opções sexuais em toda parte, é engano pensar que isto não existe mais. Belo texto, com o discernimento de sempre. Parabens Grande abraço.