O último abate
Francisco era um homem velho, extremamente magro e de pele amarelada. Olhos fundos, encovados, como duas sepulturas negras e mortais. Era um homem rico, daqueles que deixam isso transparecer nos mínimos detalhes. Anéis de brilhante nas duas mãos e uma pequena bengala de castão de prata. Tinha um Mercedes, daqueles modelos clássicos que impressionam pelo seu tamanho e estilo. Motorista sempre à disposição, discreto e serviçal como convém.
Naquela tarde de outono, Francisco passou pela casa onde moravam os meus avós e convidou-nos para um passeio pelo Alentejo. Era a época da caça às perdizes e o tio Chico parecia possuir um brilho especial nos seus olhos. Entramos no carro e partimos rumo ao sul, na esperança de visitarmos uma das herdades em que Francisco estava acostumado a caçar. Pertencera a uma família de caçadores contumazes, habituados a percorrer grandes distâncias em busca de caça. Era o mais novo de uma família de muitos irmãos que possuíam terras na planície alentejana. Mas desta vez, o nosso passeio propunha uma incursão em terrenos protegidos de reserva, onde uma simples licença de caça não era suficiente.
Chico tinha um ar muito debilitado. Usava uma manta de lã nas pernas e aparentava um ar cansado e frio. Naquele dia, eu estava sentado junto a uma das janelas do banco de trás e Francisco ocupava o assento junto à outra janela do carro. Podia observar, sem ser visto, o seu perfil de águia, nariz adunco e muito ossudo que fazia lembrar uma ave de rapina.
O silêncio era glacial e muito poucas vezes escutei a voz de alguém durante aquela estranha tarde pardacenta. Quando entramos na herdade, percorremos um longo caminho de terra até avistarmos mato e algumas árvores. Reparei que o tio Chico dava sinais de alguma agitação. O seu corpo parecia estremecer aos poucos, à medida que o carro ia avançando. A sua cabeça virava-se compulsivamente para os dois lados, em sinal de aproximação. Se não fosse o seu nariz implacável poderia fazer lembrar um cão de caça farejando a sua presa.
A um sinal do velho, o motorista parou bruscamente o carro e permanecemos em silêncio durante alguns minutos. Francisco começou a montar a sua arma de caça que carregara oculta por baixo das suas pernas. Os dois canos luzidios da espingarda podiam agora ser vistos claramente na penumbra do carro. Tirou também alguns cartuchos vermelhos de um pequeno bornal. Com a destreza própria de um velho caçador, fez com que todas as peças adquirissem vida própria, apesar daquelas mãos cadavéricas e brancas. Eu estava extasiado com aquela imagem e não ousava nem respirar.
O vidro da janela emitiu um pequeno silvo e uma poderosa arma branca descansou o seu duplo cano no perfil da vidraça. O tio Chico ajeitou definitivamente os seus ossos, de uma forma precisa e objetiva. Prendeu a respiração e premiu o gatilho da sua espingarda duas vezes. Não vi aquela morte acontecer. O animal só fora avistado por ele e mais ninguém. Eu tinha a certeza disso. Certamente, nem tinha tido tempo de iniciar o seu voo, para tentar defender-se daquele ataque rápido, brutal e fulminante.
Naquele instante, como num compasso de mágica, o porta-mala do carro abriu-se instantaneamente e dele saíram dois belos cães de caça. Lembro-me dos animais, sôfregos e determinados ao voltarem para dentro do carro com duas belas perdizes na boca. Salivavam abundantemente e o velho Chico parecia agora, por um instante, um homem mais novo e quase recuperado. Aquele momento, marcou a última caçada de um velho caçador, como sublimação de um ato contido e programado. Uma morte preconcebida da única forma possível; impiedosa e a frio. O último abate.