Coisa de Mãe - Crônica * Antonio Cabral Filho - Rj
Sempre que o sol se punha, de manhã ou de tarde, meu pai dizia: 'Vamos que é hora da onça beber água', e lá íamos nós esgueirando por entre o cipoal da floresta, evitando ruídos até deitarmos sobre uma imensa pedra que fica acima da nascente da serra, onde a bicharada vem beber água. Raposa não; não matávamos porque não tem carne. Lobos, às vezes, se estiver gordinho. Pacas, sempre, pois se alimentam de raízes leguminosas e é uma carne gostosa. Tatu, só quando entocado, pois em campo aberto ninguém lhe pega, graças ao casco que lhe permite camuflagens e às dificuldades para agarrá-lo. Cutia? Cutia também não matávamos não; é pouca carne. Catitu, é um caso a pensar, se estivermos bem entocados o suficiente para recolhê-lo antes que a manada chegue, pois é costume da família comer o corpo do ente morto para o mesmo não ser comido por outros animais. Onça, ah! Onça, é bom demais matar uma, mas tem que ser com um tiro fatal, de preferência na testa enquanto ela está de cabeça baixa bebendo água. Cai no ato, Aí tem-se que ter o cuidado de dar um tempo pra ver se não aparece companhia, senão vai virar tira gosto...
Era sempre assim. Às vezes, ficávamos horas a fio, tocaiando, esperando, conversando monossílabos, fazendo gestos, assuntando os ruídos da floresta, assovios de cobra, principalmente cascavel. Ela imita os assovios de outros bichos para atrair presas desavisadas e caçá-las. Mas, às vezes, ouvíamos orquestras de assovios! Era a macacada. Grunhidos dos machos dominantes, se destacavam dando ordens, alertando para os perigos. Eles vinham na frente, examinando o caminho; outros ficavam nas copas mais altas das árvores, para ordenar a retirada em caso de ataque. É uma verdadeira organização militar e que não deixa de ter sentido. Verificam a fonte, estudam o terreno e depois de convencidos da tranquilidade, liberam o consumo e o banho. Aí é como dizemos nos ditados populares: "festa da macacada". Uma algazarra das mais barulhentas, o que acaba por atrair predadores, todos os carnívoros, que atacam e, geralmente, com sucesso, devido ao pânico generalizado. Raposas, lobos, catitus são seus piores inimigos, são carnívoros vorazes, e seus ataques são precisos, pois destroçam a vítimas em poucos minutos.
Mas a exceção são as macacas, que nunca expõem os filhos ao risco. Elas esperam lá do alto das árvores, com eles nos cangotes, acarinhando-os, catando piolhos, lambendo-os para contê-los, fazendo pequenos grunhidos como se estivessem falando com eles alguma história, e estão. Ficam lá até tudo se acalmar, e todo mundo ir embora, quando examinam os arredores e, se comprovar que não há surpresas, elas descem e bebem água, se banham, e então chamam os filhos para se servirem. Depois, poem-nos ao pescoço e saem voando de árvore em árvore, rumo local de repouso da manada.
Certa vez, eu e meu pai estávamos deitados sobre a pedreira e avistamos uma macaca imensa sentada no galho do carvalho, comendo castanhas junto com o filhote e tão logo nos notou, colocou-o sobre os ombros e continuou saboreando as castanhas. Aí meu disse-me "aponte a arma para ela, mas sem atirar" e apontei. Rapidamente, ela pegou o filhote e colocou-o à frente dela. Então contive a espingarda e olhei para papai, que fitou-me rindo e disse interrogativamente "viu". Perguntei-lhe por que ela fez aquilo e ele respondeu-me: Pediu clemência, demonstrando que tem um filho para criar. Mas como ela bolou isso? Interroguei confuso e meu pai explicou, ao longo da caminhada pra casa, que os animais também são inteligentes e nós é que não alcançamos o modo deles se comunicarem, que isso é uma deficiência nossa...
E hoje, à tarde, enquanto o sol caía, fui passear no bananal e fiz o mesmo gesto com meu neto, e ao ver as suas dúvidas sobre os macacos comendo nossas bananas, sugeri que apontasse a espingarda para uma macaca com seu filhote no cangote, e ele fez-me a mesma pergunta que fiz a meu pai. Mas diferentemente da primeira vez, desta notei, talvez dada a proximidade, que a mãe macaca chorava.