Cotidiano
Desculpe-me, meu amor, não posso suportar os grilhões com os quais a sociedade nos ata.
Penso que, talvez, no fundo, no seu lugar mais sombrio, você me entenda. Não ser afoito pelo trabalho, labor que nos degrada, é, antes de tudo, um estado de espírito, que pousou sobre o meu ser e por nada se deixa mover. Ele está lá ociosamente negligenciando tudo e, ao mesmo tempo, afirmando o nada. O tripalium não encontrará o meu intelecto e nem o dilacerará com sua moenda torpe e rotineira.
Rogo a ti, minha amada, que não sejas a minha desgraça o motivo de tua felicidade. Não ser livre já me basta, não me coroas com os espinhos da imolação. O meu espírito sente-se afagado pelo seu, um abraço quente e uma voz viva em um mundo gélido. Os poetas, outrora, derramavam-se sobre o papel e, com todas suas chagas abertas, ao mundo, contemplavam-se em triste borrões negros que acabavam de dar à luz. Essa capacidade abolida para mim, talvez, por um demiurgo cego e de mau humor que não se atinou que me prendia em um corpo podre marcado pelo solo onde pisa.
Você é o que me faz melhor em meio a devassidão de meu tempo. Perdoe-me por sofrer dessa doença, que é um rio que vai e vem, deixando-me mareado com sentimentos pretéritos. Gostaria de me afogar nessas águas antigas e lá ser o que deveria ser. Nenhum médico pode me curar, estou essencialmente infectado.
Não sei quando surgiu, quiçá memórias da gentílica infância conturbada e feliz; mas sei que tomei conhecimento dessa garbosa enfermidade quando te conheci, pois pela primeira vez contemplava o belo, não seus lindos cabelos negros, nem mesmo seu sorriso gracioso, que sempre anuncia uma manhã em minha escuridão, não poderia esquecer dos olhos brilhantes e melancólicos mantendo presos todos os sentimentos açoitados pela sua época e transparecendo paz e tranquilidade. O que me despertou, em ti, foi o toque macio de teu espírito sobre o meu, nesse momento, senti-me um estranho que habita a mesma casa há muitos anos, desde então sofro da mais maravilhosa das enfermidades.
Acredito ser o que sou e, por assim acreditar, posso ser o que quero, não procuro reconhecimento alheio, ser eu apenas para mim já me consome grande parte de meu tempo, não tenho tempo para outros. Pobres homens, não sabem como Narciso deleitou-se em leito aquoso, por saber que mesmo sendo o que ele queria ser alguém lhe amava. Eu, ainda, tenho o prazer de ouvir uma palavra amorosa escorrer de teus lábios e desaguar na minha alma. E, por ser palavra, que codifica o que sentes, mesmo se falaciosa, incendeia-me com uma chama que ilumina todo subsolo escuro, cujo espaço ocupado por mim é, muitas vezes, hostil e solitário.
Se Cúpido tivesse me destinado o pobre fim de Apolo, eu seria um cego a vagar por um campo de tulipas sem poder contemplá-las; no entanto, antes de tudo, nasci dionisíaco e por Eros fui favorecido, e, por meio dele, como um farol, o Belo adoentava-me.
Bela mulher de sorriso largo salvou-me do infortúnio e da desgraça da vida material, levou-me para bailar e, a ritmo acelerado vejo-nos, em rodopios loucamente forjados, a dançar sem nos darmos conta de qual banda toca.