A máquina de escrever.

Não são normais os impulsos que me arrastam até bem perto de coisas antigas.

Se pudesse, moraria num antiquário, faria de velhos livros travesseiro, ouviria discos de vinil e manteria o olhar sereno, a voz calada, até ganhar a confiança da máquina de escrever jogada no canto fundo da loja, quase sem cor, num modo de mágoa, como se me cobrasse os tantos anos sem uma única visita.

Se houvesse gravado o instante do primeiro som das teclas invadindo meus ouvidos, ele não seria tão real como agora, quando aliso a máquina de escrever e apago o resto do mundo.

É aquele momento que o tempo – esse velho canalha e banguela – me arrasta até o ano de 1982.

Eu era um tímido rapaz do corpo esticado e dos cabelos ruins, repleto de ideais nunca concretizados.

A lida como aprendiz de ourives já havia me mostrado que eu não tinha habilidade suficiente para vencer naquela profissão.

Meu mestre, Gilberto Billerbeck, me falava, armado no seu assustador jeito sincero, quase todos os dias: “seu destino não é o metal, é o papel”.

Ele sabia o que falava: o alicate e as demais ferramentas judiavam das minhas mãos finas.

Eu precisava aprender a datilografar.

Ainda lembro com perfeição o lamber de dedos contando o dinheiro da matrícula, guardado na paciência de um monge, e a euforia assim que pude me sentar diante daquela que considerei a mais perfeita invenção de todos os tempos: a máquina de escrever.

O sistema quwrty logo dominei, em pouco tempo conseguia datilografar mais de quinhentos toques por minuto.

Aprendi ligeiro todos os movimentos, os dedos afundando as teclas, as mãos ágeis, quase um tapa, movimentando a alavanca, passando o carro para a linha de baixo, formando outro barulho inesquecível, como se fosse o eterno bater d'asas de um belíssimo pássaro.

Tlec, tlec, tletlec, rec, rec, vupt!...

Era um tempo de medos, incertezas e tenebrosos segredos, daquelas coisas que só se confessa ao vento, mas naquele momento, o papel branco bem à frente dos olhos, pedia registros.

Escrevi desabafos no ritmo do barulho da máquina de escrever e depois joguei tudo no lixo.

Ah, que saudosismo bobo é esse provocando um fio fino de lágrima, quente e salgada, a riscar os meus olhos?

Ainda bem que não tem ninguém por perto

– eu choro, mas tenho vergonha – e lembro, naqueles tempos, os comandos usavam fardas.

Às favas com o seu autoritarismo!

Escrevi certa vez, marcando com tinta vermelha o papel virgem e branco, e depois completei, na forma de uma facada certeira: “se oprime o meu livre pensar, és então meu inimigo!” frase forte que logo depois apaguei, com medo de perder várias coisas, principalmente me impedissem de escrever.

Anos depois, tornei a datilografar, na mesma letra vermelha e papel branco:"Vencemos!”

Será?

E foi na máquina de escrever o meu primeiro verso, torto, sem sentido, desprovido de sutilezas e ele também apaguei para nunca mais me aventurar em poesias, assim como elimineis com várias batidas na tecla X as sensações inconfessáveis que moça dos cabelos caracolados e boca carnuda, moradora da casa na esquina, me provocava.

Nem lembro mais o nome dela...

E agora, nesse canto úmido da loja de antiguidades, aliso com a ponta dos dedos o teclado da máquina de escrever e uma montanha de pensamentos me invade; quem sabe no futuro eu perca o resto de medo e escreva nela sobre tudo o que vivi - o corpo lasso, mas a mente sadia - somente para ouvir de novo aqueles barulhos confidentes de outrora e alimentar meu coração saudoso, sedento da vida, do ancião que desmorona e ainda guarda lembranças, doces, amargas, repletas de espantos, coisas que desde muito moço carrego e hoje já não me avassala.

Tlec, tlec, tletlec, rec, rec, vupt!...

Saí da loja de antiguidades levando nos braços a velha máquina de escrever, ansioso como um menino pobre que ganha um brinquedo.