DOMINGO CHUVOSO, LEMBRANÇAS DE FINADOS






30 de outubro/2011.
Um domingo chuvoso, frio e carrancudo.
Nada a fazer além de amassar o nariz contra a vidraça e ficar espiando a rua deserta um pouco além dos gradis a circundar, nêste ano, roseiras birrentas que ainda nem tocaram-se de seus deveres primaveris.
Noutros tempos estariam tôdas floridas.
Rosas são flores (As vezes até me surpreende  êste fantástico poder de percepção que me persegue  rsrs...) e flores lembram tantas coisas, inclusive...Dia de finados.
Embora hajam situações bem mais amenas e românticas às quais estejam elas associadas ,minhas lembranças recaem agora sobre esta data por algumas razões especiais.
O dia de finados, nos meus tempos de guri ,e aí vocês dirão:
[ Ih!...Há quanto tempo foi isso !? Resignado,daqui,eu admito a minha  velhice]
Tinham  uma conotação de algo ligeiramente festivo, ainda que prevalecesse aquêle quase dolorido sentimento de saudade, é claro .
Os familiares reuniam-se na semana que antecedia a data e um mutirão dava conta da pintura dos túmulos, dos reparos e detalhes finais, com todo respeito e obedecendo o gosto daquêle que descansava em paz (nem tanto, eu diria. Até porque ,durante os mutirões, matraqueava-se com certo exagero, sobre atuações e escorregadelas do ilustre , quando nêste plano)
Meia dúzia de túmulos, hoje reunidos num jazigo, que depois de pintados eram submetidos aos meus cuidados para "lançar mão à pena" e desenhar com letrinhas bem torneadas: "Aqui jaz !...Ou, descança em paz...",a “bondoza (?)” alma dêste ou daquêle.
Havia sempre uma tia de plantão pra ordenar:
_”Mande êle: O Thuto (apelido que carrego dêsde paleosóicas eras) que tem letra bonita e mão leve de garoto”.
Envaidecido eu deitava-me sobre o túmulo.
Outro tio, igualmente de plantão, acrescentava:
_"Éh! apesar de gorrrdo ,o filhote de baleia é ainda o que nos  resta  de mais suave pra subir no túmulo.
[Isso tudo,tripudiado com um  sorrisinho cínico]
Uma terceira tia de plantão,arrematava:
_"E vê lá se não borra !,viu ???
[Escreve bem mas, é meio destrambelhado]
Então, senhores, era esta a minha sina. Mas ainda não era tudo.
Nos dois dias que antecediam a data,meu pai também chegado à um dia de finados, promovia a colheita das flores.
Um exagero !
Para esta tarefa já encontrava-se hospedado em nossa casa, João, um amigo de infância afilhado de meus pais,que vinha de uma localidade distante especialmente para as festividades, digo, a celebração,o dia de reverenciar os que se foram, enfim...
Chafurdados na lama ,colhía-mos centenas de "copos de leite" sob o olhar ordenador de papai que os separava depois, por tamanho e aparência.
Uma verdeira frescura!
Até porque o destino das flores era a meia dúzia de túmulos dos parentes.
Vó Maria, mamãe e..."As tias", separavam em pequenos maços os brincos de princesa, rainhas margaridas e os mosquitinhos.Tinas de água amanheciam repletas de flores e na manhã do primeiro dia de novembro quando(ninguém trabalhava porque era "de todos os santos") éramos, João e eu, os únicos a suar os  lombos subindo e descendo a ladeira que dava para o cemitério com carriolas cheias de flores.
Os túmulos ficavam como que escondidos sob o exagerado manto florido que lhes era imposto.Envaidecido, papai ouvia os comentários elogiosos sobre "o bom (?) gosto" dos Teixeira.
Uma enxurrada de “Óhs!”, “Que lindo!”,”Nóoossa!””Maravilhoso!”... dentre outras amenidades.
Meu amigo e eu, que conhecíamos os bastidores,não achávamos a menor graça.
Paralelamente à parafernália florida promovida por vó Maria, ocorria a chegada das "amiguinhas" .Tôdas com seus mais de 70 aninhos, muito bem vividos, segundo elas.
Iam-se chegando de longe: Margarida,excelente contadora de causos, Margaridinha (a russa), chegada à um talagaçinho da boa, que era pra animar um pouco, ”êstes dias tão tristes",em suas palavras (depois de uns goles , cantarolando "Tango!  Tango  triste ! Leva  ao mundo  esta  mensagem  de amor..." arriscava-se nuns passitos de dança)
Maria Coronha, corcundinha, chegada à um pote de coalhada com doce de pera da "tia Mariquinha"(era assim que chamava à vó Maria)
Luiza farinheira e ,de quebra...Luzia (meio bipolar)que já residia conosco.
Vó Maria pilotava os panelões de comida com seus temperos guardados à sete chaves e a mesa ficava pequena pra tanta gente.
A luz de um lampiãozinho iluminava aquêles rostos marcados pelo tempo e histórias , lendas e crendices, permeadas à generosas crises de tosse, iam invadindo a cozinha .
Um desfile de relatos de mulas sem cabeças, almas penadas, gritos do além e lobisomens ,armavam cenários dantescos à quem teria de atravessar o corredor escuro até chegar ao quarto.
Para acolher à tôda esta jurássica comitiva, colchões de palha iam-se jogando pelos quartos, pela sala e até pela cozinha.
A madrugada transformava-se num festival de roncos.
No sótão Luzia,dormindo, falava com suas bonecas de pano. Sonoras risadas de não sei quê, escorriam pelos desvãos.Quase borrando as calças,eu encobria a cabeça e ainda assim, desfilavam em meu caminho todos os personagens citados ao redor da mesa.
A fala sinistra de Luzia na escuridão do sótão,aterrorizava até mesmo suas bonecas de pano,pensava com meus botões.
Amedrontado, eu chegava ao ponto de ouvir passos descendo a escada..
Quando o dia raiava... Enfim era finados !
Os hóspedes e a família Teixeira subiam a ladeira para reverenciar os entes queridos e aproveitar a única oportunidade do ano para rever velhos conhecidos que apareciam somente nestas ocasiões.
E aí ,diante dos tantos elogios sobre a decoração das sepulturas o melhor que podíamos fazer, João e eu, "era  correr pro abraço!"
A chuva continua caindo por aqui. A saudade daquêles que se foram habita em mim, mas nem sempre relembra-los com tristeza é a melhor maneira. Assim, optei por relembrar um lado meio cômico de sêres que me são inesquecíveis.
Dentre êles,João, meu amigo de infância que hoje colhe flores em outras dimensões.

Texto reeditado.
Preservados os comentários ao  texto anterior:




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01/11/2011 20:59 - Anita D Cambuim
Movimentada infância, a sua! Talvez por isso você goste de relógios barulhentos e mensageiros de vento...rs. Abraço, boa noite, Joel.


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01/11/2011 00:12 - YARA FRANÇA
Vou fazer um comentario periferico. sem nem tocar no assunto do txt, porq um dia frio e chuvoso é considerado carrancudo? é a nostalgia de trópicos e sol ? qualquer dia chuvoso e cinza pra mim é lindo, afinal eu tomei overdoses cavalares (olha a redundância)) de sol.


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31/10/2011 21:56 - Cronista
A leitura de certos textos nos transporta a lugares já percorridos. Memórias adormecidas são reativadas permitindo que vivenciemos tudo  outra vez. Algumas são agradabilíssimas e representam um espelho de nossas emoções, servindo de combustível para aquecer a contínua jornada rumo ao enigmático amanhã.


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31/10/2011 19:45 - Milla Pereira
Eu sempre me perguntei, pq chove em todo dia de Finados? SEi lá, mas deve ser um sinal para os que ficaram aqui, com saudades. Belo texto, poeta, parabéns!


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31/10/2011 17:47 - luciana vettorazzo cappelli
Suas cronicas me encantam, pois levam do riso ao choro, como se as palavras fossem o vento movimentando as folhas e as pétalas no chão. Parabéns por mais esta grande obra, Iratiense.


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31/10/2011 16:46 - taniameneses
É bem assim o Dia de Finados. Guardamos com carinho ou mesmo com muita tristeza a lembrança dos que foram embora de nossas vistas, mas que permanecem em nossas mentes e sentimentos. Abraços, Iratiense.


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31/10/2011 07:00 - Carlinhos Colé
É, caro Thuto. Parece que seu Dia de Finados era sempre uma festa. Linda crônica!


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30/10/2011 23:09 - Lisyt
Por mais estranho que pareça, também tenho ternas recordações dos dias de finados de minha infância. Já escrevi sobre isso. Em nosso olhar de criança, tudo era colorido; e são estas imagens que guardamos./ Abraço.Tenha uma ótima semana( com pouca chuva)


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30/10/2011 21:22 - Maria Olimpia Alves de Melo
Minhas relações com Finados não deixaram lembranças interessantes como as suas e acho q foi porque minha primeira grande perda para morte aconteceu quando eu já tinha 18 anos.

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30/10/2011 18:04 - lenapena
Boa tarde, Joel, sempre que venho ler seus escritos, fico impressionada com a semelhança de minha infância com a sua. Esse texto, parece com a casa de meus avós, na época de finados. Até os copos de leite, que eu ia colher junto com os primos, Darcio e Dalvio, e voltavamos com os braços carregados, as rainhas margaridas, quem apanhava era minha tia Filomena, os tumulos eram pintados pelo meu tio de nome Primo (nasceu de parto de gemeo e em primeiro lugar, por isso o nome, rs) Minha tia Ada, ficava encarregada de trocar os vasos, e levar as velas que seriam acesas. Ah, saudade daquele tempo, da vila tranquila de chão de terra batida, que tinha somente um cemiterio, mas como era animado o lugar nessa data. Um abraço