Assim ou ... nem tanto. 114
O Outro
Dentro de mim há outro como eu. Não exatamente como eu mas suficientemente parecido. Quando desisto de procurar alguém seja amor, amigo, conhecido é ele que me impede de me sentir só. A voz que escuto é a dele e é ele que vê, testemunha os meus atos ou sensações, aceita ou condena sem meias medidas. Como eu mas mais feroz. De tanto conversar com ele e de o ouvir recusei que fosse a consciência, coisa inventada por quem vive sozinho a realidade que lhe cabe. Poderia ficar aqui muito tempo ao frio, à chuva ou ao calor, sem adormecer, sem murchar como flor cortada, sem petrificar com a indiferença por tudo só porque, no fundo de mim vive quem me sabe bem melhor que eu, quem me entende sem ter de atomizar as explicações até à raiz da justificação, sem ter de, sequer, usar qualquer palavra. Ele sabe, conhece, adivinha e diz-me sem criticar o que faria se não estivesse misturado ao meu sangue a defender-se de apertos e de tripas. O meu fundo, disse-me, tem um lastro nauseabundo que o impede de ir mais longe mas, saltando de um para outro lado, evitando os jatos da Aorta consegue ver-me por dentro, inferir-me, ditar-me atitudes e, até, aconselhar-me maneiras de estar que nunca passariam a minha barreira hemato-encefálica, essa membrana que dizem ser obstáculo a muitas coisas da química do corpo quer sejam de cura ou de contágio, de pensamentos que, sem ligações perigosas, não passariam de ovelhas de lã muito suja. Ele vê, espia, regista e depois conta-me. Se está bem-disposto ou se lhe peço muito, conta-me tudo.