A menina que parou o tempo - parte 2

Olho pela janela e vejo uma pessoa passando apressada. A chuva fina cai intermitente, como uma lágrima que escorre silenciosamente deixando um leve sinal no rosto. O vento sopra delicadamente, balançando as folhas das árvores, como quem afaga os cabelos de uma criança que chora baixinho, consolando.

Lá fora as pessoas passam indiferentes, abrigando-se em seus agasalhos, apressados com seus afazeres. Enquanto a vida corre célere, eu fico aqui a pensar com os meus botões.

Como estará a minha garotinha dos olhos inesquecíveis de gotas de orvalho? Que estará fazendo a esta hora? Será que estará trabalhando? Às vezes me esqueço que ela só existe na minha imaginação, e me imagino criança, juntos a brincar de roda.

A primeira vez que brinquei de roda foi aos oito anos de idade. A noite estava clara iluminada pela lua e pela fogueira. As crianças dos trabalhadores estavam limpinhas, de banho tomado, todas vestidas com a sua melhor roupa, sandálias nos pés e laços nos cabelos. Eram todas pretinhas, e magrinhas, e naquela noite, especialmente, estavam radiantes de alegria, era noite de São João. Cantavam alegremente as cantigas de roda, batiam palmas e riam. Eu tinha no meu bolso algumas bombinhas de traque e uma caixa de fósforos. Quando me aproximei, chamaram: - Venha brincar, venha.

Olhei para trás, olhei de um lado e de outro, nenhum menino, só eu. E as meninas deram as mãos formando um círculo, deixando aberta apenas um espaço para mim. Entrei na roda acanhado, peguei nas mãos das meninas que ficaram do meu lado.

- Eu sou pobre, pobre, pobre, de ma ré ma ré ma ré...

As meninas cantavam e saltavam elegantemente e eu tentava imitar os seus passos. Em poucos minutos, já estava completamente entrosado, brincando a valer, esquecido completamente dos meus amigos, que se aparecessem naquele momento seria um vexame, com muita gozação: - Aí! Mariquinha! Diriam com certeza.

- Pai Francisco entrou na roda.

- Tocando seu violão...

- Prilim, Prilim.

- Vem de lá seu delegado

- Pai Francisco foi pra prisão!

- Como ele vem todo requebrando...

Essas cantigas não faziam muito sentido para mim, mas isto pouco importava, pois a alegria era contagiante.

Da janela do hospital fico a imaginar quem seria a verdadeira dona daqueles olhos. Será que ela disse que trabalhava num banco? Ou eu teria imaginado isto? Será casada? Noiva? Talvez... Com o passar do tempo, a realidade vai se misturando com a imaginação e dificultando distinguir a lembrança. Ela estava sozinha naquele dia, mas e depois? Como terá sido a viagem?

Enquanto penso, os seus olhos me aparecem nítidos na lembrança. Um sorriso franco, sorriso maroto: •.

- Vem brincar, vem.

Parece que estou vendo, uma garotinha da minha idade, oito aninhos, cabelos castanhos, pele clara, magra.

- Vem brincar, vem. Vamos brincar de roda... Pega na minha mão, assim não! Isto, assim...

De repente, o sol. O vento frio e a chuva deram lugar ao sol. Já é quase meio dia, nem vi o tempo passar. Agora são muitas pessoas que passam. E estão ainda mais apressadas. Algumas retornam para suas casas para o almoço, outras se dirigem para uma lanchonete. Mais adiante, atrás do prédio alto que tapa a minha visão, há uma bela praia de areias brancas. Sei que algumas pessoas passeiam com pés descalços, cabelos soltos ao sabor do vento, camisas abertas, sandálias nas mãos caminham pensativas. O que se passa na cabeça das pessoas em momentos como este? Cada pessoa com seus problemas, seus amores e desamores.

Estamos caminhando pela praia de mãos dadas, os seus pés pequenos pisando as areias brancas. Seus cabelos esvoaçando escondem parcialmente o seu rosto, mas os seus olhos brilham:

- Venha vou mostrar para você o que encontrei. Vai ser um segredo nosso só meu e seu. - Venha, corre. É aqui pertinho.

Logo adiante, após a ponta da praia, há uma área com alguns arbustos sobre as pedras que dominam o lugar. São pedras grandes, outras pequenas, umas sobre as outras. Embaixo as ondas se quebram num estrondo soltando brancas espumas que rapidamente se desfazem.

- É aqui, apontou mostrando uma passagem entre duas pedras semi-encobertas pela vegetação. Dentro escondida sob as pedras enormes, uma pequena praia de areias límpidas completamente oculta tanto do mar como da estrada. Havia algumas pedras arredondadas semi enterradas na areia. Algumas conchas coloridas enfeitavam o lugar.

– Quando a maré baixar este lugar fica todo sequinho. Disse.

- Este lugar é o nosso segredo. Quando você sentir saudade de mim você vem aqui e me vê. Quando eu quiser te ver eu venho aqui.

Sentamos na areia fria, deliciosa. Seus dedos finos escreveram o meu nome na areia, e eu escrevi o seu. Em torno riscamos um tosco coração.

- Mais tarde, quando a maré subir vai apagar e ninguém vai saber que estivemos aqui. Virou-se de frente para mim mostrando aqueles olhos claros, vivos, indescritíveis, que foram crescendo, crescendo até que eu fui completamente engolido naquele mar de luz que se derramava sobre mim. Minha mão ficou parada a meio caminho do seu rosto esquecido, embriagado naquela luz.

Minha imaginação bate asas e voa, e eu só sei o seu nome. E nem sei onde fica Alfavile. O final da tarde se aproxima, e eu ainda não fiz minha mala. Talvez hoje eu volte para casa. Talvez domingo eu vá para Ilhéus. Mas não me lembro mais do nome do hotel em que você se hospedou. Se soubesse iria lá só para pisar o chão que você pisou. Só para caminhar na praia que talvez você tenha caminhado, descalço para sentir nos meus pés a areia que seus pés pisaram. De qualquer modo, desde o dia que te conheci, você nunca mais me deixou. E com seu olhar, fez de mim uma criança, e se tornou, depois de tantas, a minha primeira namorada. A vida corre lá fora, mas por causa dos seus olhos, sou apenas uma criança. Entretanto eu não sei quem é você. Só sei que hoje é dia da criança, e uma criança merece ganhar um presente, e assim, resolvi me dar uma alegria especial. Por isso estou mandando este texto para você. Só para ficar aqui imaginando... você.

12/10/2005