APENAS VI
Eu vi. Vi, mas nada fiz. Crianças dormindo ao léu, na rua. Os braços descobertos, na forte ventania. Eram duas pessoas bem pequenas. Almas serenas. Eu vi. Isso me perturba o sono. Quanta indignação há em mim. Desejos vários por justiça. E fazia tanto frio. Encontravam-se deitados em colchões rasgados, no chão. Eu vi. Um silêncio profundo pairava no ar. E diante deles, um casarão iluminado. Que raiva!!! O que custava chamar para um mero jantar? Sabe-se lá se eles comeram até agora. Aquela visão não sai de meus pensamentos sombrios. Sinto-me completamente dilacerada. Eu sofro tanto com as desigualdades, que permanecem impunes há uma eternidade. Por que as pessoas são tão egoístas? Por que só pensam em si próprias? O pai, dono de uma carrocinha de lixo, estava sentado na calçada. Olhava, cansado, os filhos cochilarem. Não tinham nenhum destino certo. Não havia proteção. Deus era o único protetor. Eu vi tudo. Foi hoje. Depois de uns minutos, choveu bastante. Eu já estava longe deles. Era tarde da noite. Quando voltei, não estavam mais lá. Talvez, tenham ido buscar abrigo da chuva em outro lugar. Aconteceu no dia 28 de julho de 2017. Não suporto mais lembrar. O pior é saber que eles são só mais um número nas milhares de estatísticas. Os números que apagaram as pessoas, seus sonhos e sua personalidade. Eles dormiam, tranquilamente, nas ruas da cidade. Crianças tão frágeis. Sim, eu vi. Não fiz nada. Como dói não ter feito nada. Sou horrível. Sinto que sou. Em minha casa, não tinha comida o suficiente para lhes oferecer, mas se oferecia o teto, ora. É bem fácil dividir. Basta doar ao outro o que você também queria para si. Ajudar ao próximo faz parte de nossa missão nesta vida repleta de tanta confusão. Eu vi. Eu enxerguei as mazelas na Terra. Tanto ódio e repressão. Eu quero que uma luz ilumine toda essa escuridão. A luz mais humana da razão.