Assim ou ...nem tanto.113
O Retrato
O retrato ampliado que olhava, emoldurado, para si era uma biografia perfeita. Acharam os filhos que era bom tê-lo a tutelar a sala, pendurado muito alto, à maneira polaca. Aceitara sem contestar porque, a partir de certa altura da vida, a sua opinião, que já era pouco considerada, passara a não existir por não haver quem se lembrasse de a escutar. Ficara transparente. Sentia os olhares e as conversas passarem ao lado ou por cima como se ela não estivesse presente. A fotografia cumpria apenas uma tradição. – Fica ao lado do retrato do pai para que, quando se for embora, a gente recorde o seu rosto, disseram. E, cuidadosamente escolhida a moldura, o seu rosto olhava para as cortinas e para os naperons colocados nas costas do sofá onde nunca ninguém se sentava. E, contudo, pensou, de si aquilo era só o embrulho de um corpo velho. Por dentro, forte, viçosa, havia uma mulher que amara tanto, que se rasgara para parir os filhos, que vira o tempo chegar e enrugá-la sem achar que isso lhe dizia respeito. E, agora, a conversa do retrato afirmava que era ela a velha de cabelos enrolados em toutiço, de vestido negro de gola subida e que eram suas as mãos frágeis que escondiam mal as contas do rosário. Estava, naquela fotografia a preto e branco, a sua vida toda. Os olhos ainda eram jovens e remetiam para tempos muito mais felizes. O resto eram só sinais, marcas, cicatrizes do caminho, pesado gastar dos anos a criar filhos, a aguentar o homem em que se transformara o seu amor. Recordava as aflições, as promessas feitas aos santos da devoção, um certo alheamento de Deus e uma proximidade com os santos, com as velas, as rezas repetidas com que acreditava poderem comprar a saúde e a sorte dos seus. De si mesma não cuidara. Para uma velha assim, um retrato oval perto do teto estava de bom tamanho.