O FRIO DO INFERNO
 
              Acordou num estado de torpor.  Parecia envolto numa névoa. A impressão de ter feito uma longa viagem. Mas não sentia cansaço. Ignorava onde estava e de onde tinha vindo. Não se lembrava de nada.

          Em volta de si, nada que respondesse suas dúvidas. Vasculhava a memória e só enxergava o vazio. Não sentia seu corpo. Onde estava? Era a pergunta que martelava seu cérebro.

             Lentamente a névoa se desfazia. Aguardava ansioso surgir uma imagem, para tentar descobrir o que tinha acontecido.  Os pensamentos se agitavam em seu cérebro, à procura de respostas.  Aquela espera sem fim fez surgir em sua mente a insólita ideia de limbo. Sabia que limbo era um conceito católico para o qual jamais dera importância. Um território neutro entre o inferno e o paraíso, uma estação de espera pela eternidade. De repente, essa ideia se apossou de sua mente.  Associava limbo ao seu estado atual. Uma paralisia existencial, uma espera angustiante, onde nada acontecia.  Piscou seguidamente os olhos. Uma tela fluida se formava no campo visual. Nela apareciam letras, palavras, datas, acontecimentos, imagens, cronologia, fragmentos de uma existência. Sua biografia na tela assumia clareza assustadora.  Como era possível, tudo que vivera resumido assim tão nítido, tão identificável? Um retorno inquietante de lembranças que deveriam estar esquecidas! Fantasmas irreverentes zombando de suas memórias. A tela, inexorável, expelindo imagens, acontecimentos, fatos, vomitando sua vida com total irreverência.

           Conhecia relatos de quase morte, em que as pessoas viam sua vida num filme rápido, momentos antes de morrerem. Seria isso? Estaria vivendo sua passagem? Por isso não sentia  o próprio corpo, como se levitasse?  O que viria em seguida? Algum encontro inesperado? Pelo menos sua mente estava alerta, curiosa, viva. Se fosse crente, já estaria amedrontado, temendo o acerto de contas tão apregoado pelos fiéis. O Juízo Final. Ou quem sabe a iminência de uma reencarnação? Bobagem. Melhor concentrar-se na tela diante de seus olhos. Dali poderia  vir alguma resposta.
           Algo inesperado começou a acontecer. Julgou estar tendo alucinações. Agora ele se movia. Movia não, estava inerte, mas seu corpo era transportado para dentro da tela. Sentia como se entrasse em outra dimensão.  Começou a considerar bem viável a hipótese de sua morte. Não uma morte iminente, mas morte já acontecida. O que vivia seria o pós morte. Duvidava dessa conclusão, pois não tinha lembranças de nenhum acontecimento funesto. À medida que avançava por aquela realidade desconhecida, as cores fugiam, apagavam-se.  Um branco brilhante tomou conta de tudo. Como se mergulhasse aos poucos num campo de neve.  Ocorreu-lhe um pensamento que provocou um arrepio. Estaria indo para o inferno?  Não podia ser, pensou. Cadê o calor? O fogo? O mármore do inferno? Nada de precipitações, melhor acalmar-se. O frio só aumentava. Começaram a desfilar diante dele silhuetas de pessoas estorricadas pelo frio, rostos gélidos e inexpressivos. O olhar parado no nada, como se estivessem em transe. Ninguém lhe dava importância, nem notavam sua presença. Seus olhares eram perdidos, sem foco. Que lugar era aquele?  O frio penetrante atravessava sua pele, congelando todo seu ser. Não sentia dor, não sentia mais nada. Apenas uma dormência letárgica, causada pelo frio. Descobriu logo que aquele não era um lugar de alegria, de paz ou de prazer. Não havia o menor fiapo de felicidade naqueles rostos. O sofrimento também não era visível. Não havia gritos, gemidos ou esgares de dor. Só o marasmo gelado do conformismo. Descartou de imediato a ideia de estar no céu, pois nada à sua volta lembrava um paraíso. Temia vir a fazer parte daquele cortejo horrendo que desfilava diante dele, aquela manada de semi-mortos desfigurados pelo frio.  Uma certeza se apossava de sua mente. Só podia estar no inferno, ou à caminho dele. Seguiu-se uma conclusão inevitável. Acabara de fazer uma incrível descoberta. Como nunca tinha pensado nisso? O inferno não tem fogo, não tem capeta, não tem calor. O inferno é frio, é mortalmente gelado. É isso. Via cair diante de si um mito católico milenar. Todos os profetas e pregadores estavam enganados. O Inferno é infernalmente frio, gelado. Precisava compartilhar tão importante descoberta. Não se contendo de euforia, começou a gritar loucamente, o inferno é gelado! O inferno é gelado! De repente, surpresa e frustração. Acordou em sua cama todo molhado de suor, com a boca seca.  Que bobagem, pensou, tivera apenas um pesadelo. Mas passaria a viver com uma dúvida eterna, afinal o inferno é quente ou gelado? No fundo, tinha certeza de que não valeria a pena descobrir.
Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 10/10/2017
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