O PRIMEIRO CHICLETE
Da série:
MEMÓRIAS DE MINHA RUA
(13/03/2012)
Lembro-me de que ventava muito naquela tarde.
A tênue cortina de poeira que erguia-se do chão, rodopiava entre os arbustos, desenhava no ar estranho passo de dança e cruzando as portas ia tomando assento entre a fileira de garrafas nas prateleiras do armazém Andrade.
As últimas laranjas no quintal adoçavam nossas interioranas existências.
Estávamos, meus primos e eu, inquietos naquele dia. Atentávamos aos roncos que cruzavam a estrada do Riozinho,sabedores de que num dos automóveis chegaria a visitante.
A ventania que eriçava capins à beira da estrada, empurrava as janelas da venda enquadrando numa delas, em opaco, a bodegueira e seu curioso (quase sinistro) par de olhos costumeiramente "assuntantes" de quem passava, quem chegava , quem seguia...
Seu olhar sempre fora dividido entre as tranças de crochês e o "assuntamento" da estradinha defronte ao armazém.
Desta vez , quando o luxuoso automovel de aluguel foi estacionando lentamente ela pode perceber tratar-se de alguém vindo de longe. Alguém que não lhe era do conhecimento.
[Hóspedes embarcados,como costumava dizer]
Do outro lado da estrada , na casa de vó Izaura ,davam-se os ultimos retoques nos preparativos da espera.
Gritos esganiçados ecoaram pelos terreiros:
-Ela chegou !...
Tia Iracema chegou !...
Enquanto em desabalada carreira buscáva-mos a estrada, na saleta com móveis antigos a figura grisalha de vovó era engolida pelo grande espelho de moldura preta.
No lado oposto da parede uma imagem de Nossa Senhora da Piedade deixava-se engolir por igual, com um olhar materno sobre a cabeça da outra a ajeitar o grampo que lhe prendia os cabelos.
A esta altura nós,a netarada, estávamos juntos do automóvel. Enquanto o motorista retirava as bagagens, pudemos observar que desta vez ela não viera só. Fazia-se acompanhar
das "crianças de tia Elzi".
Marlene e Luiz Alberto, nossos primos pontagrossenses, afeitos a alguns esnobismos.
Acostumados à vida num grande centro,aproveitavam todas as oportunidades que se ofereciam para reafirmar nossa condição de matutos e capiáus.
A volumosa bagagem espalhada pelo chão fora rapidamente dividida e ,feito formigas carregadeiras, tomamos o rumo do casarão fazendo transparecer nosso contentamento pela chegada.
Tia Iracema, assim a chamáva-mos, era na verdade a irmã mais velha de vovó, a quem carinhosamente denominava "Nina".
De estatura mediana, gorducha, sempre muito bem vestida, trazia maciez de veludo na voz.
Era sempre esperada com carinho e aqueles seus ares aristocráticos , envolvidos em suave perfume de Lavanda Inglesa, representavam ao nosso mundinho interiorano a personificação de uma de fada madrinha.
[Aquela à quem se esperava com ansiedade e ia deixando um rastro antecipado de saudade ao cogitar-se imaginar sua partida]
Na escolinha , ao lado da casa de vovó, magnólias ofereciam-se em brancura e aromas pelos desvãos da cerca. Folhas lustrosas de um verde vigoroso pendiam,aguçando a sensibilidade da nossa fada.
As reverências sobre a beleza das flores acercaram-se de tal sutileza que nos pareceram embrulhadas em papel celofane.
Por conta disso, uma cheirosa flor lhe fora mediosamente oferecida.
Enquanto vovó , debruçada à janela , aguardava com olhos marejados a pequena comitiva, os primos visitantes apressavam-se em abrir uma das malas de onde surgiram pequenos embrulhos de presentes cujos conteúdos nos eram totalmente desconhecidos.
-Isto chama-se "chicletes", adiantou Marlene.
É a última moda em Ponta Grossa; têm sabores de frutas e de hortelã. Com êles podem-se fazer bolas imensas, o que é muito chic quando se está dançando "Twisty".
Vocês devem tomar cuidado para não engoli-los. Mastiguem-os, soprem, façam as bolas e depois...
Recebidas as primeiras instruções partimos para a parte prática e foi uma sensação indescritível.
De início ficamos um tanto confusos mas , aos poucos , fomos pegando habilidade com a coisa.
Decorridos alguns dias, foram-se os visitantes.Os sabores de menta e frutas desapareceram.
Restara tão somente aquela coisa ,meio pegajosa, conservada cuidadosamente segundo as orientações da prima Marlene:
-"Uma pequena trouxinha que , grudada à cabeceira da cama, pode ser reaproveitada,e assim, usada por muuuuiiiitas vezes".
Isto ocorreu no final dos anos cinquenta, inicio dos anos sessenta.
Pura infantilidade !
Um fato corriqueiro atrelado aos acordes de "Dominique e Estúpido cupido" que ouvíamos incessantemente pela rádio local e, acompanhávamos cantarolando com bocas de chicletes.
E como foram marcantes aquêles presentinhos !...
Algo que hoje retomado, faz-me lembrar o comercial do primeiro sutiã pela televisão.Eu diria que depois daquela nossa experiência, ficou comprovado de que "O primeiro chiclete a gente nunca esquece !"
Decorridas agora,umas tantas décadas, tenho a convicção de que meus primos, igualmente, guardam na memória a enfumaçada tarde de um agosto distante quando bolas de chicletes , em cores e sabores variados , explodiram em frente à casa da vó Izaura.
Sòmente alguns meses depois ,a guloseima chegara às prateleiras do armazém Andrade,alardeada pela "assuntante" entre a capiauzada ,como “a grande novidade".
Nós, porém, já a conhecia-mos...
Texto reeditado.
Preservados os comentários ao texto anterior:
14/10/2016 10:34 - Lourdes Bernadeth Berton [não autenticado]
Dominique,nique,nique,siempre alegre cantado...esperando alguém que possa amar....o seu príncepe encantado, seu eterno namorado que nao se cansa de esperar........Parece até que acabo de por o disco na vitrola.....O chiclets nao me impactou; a Maca do Amor, aquela com um verniz brilhante por cima, no entanto, me deixou impressionada a primeira vez que vi. Como sempre os teus textos sao como entrar na máquina de viajar ao pasado.
17/03/2012 20:22 - Anita D Cambuim
Tias ricas são deliciosas. Sorte de quem as teve ou tem. rs.
16/03/2012 13:37 - YARA FRANÇA
Nada como a infancia pra fazer desses momentos, algo digno de nota.Tb lembro até da embalagem, listrada de vermrlho azul e branco, o famoso ping-pong. Estamos ficando velhos.
15/03/2012 10:41 -
Bom dia! Quem prazer delicioso ler uma crônica saudosista que nos remete a um passado feliz. Você escreve com criatividade e muita imaginação. Parabéns, amei!!! Grata pela visita, foi um prazer. Fotos de preciosa raridade. Abraços.
13/03/2012 22:16 - Lenapena
No armazém do meu avô Totó, (único lá na vila) o "Chiclete de bola" chegou, e nem sabíamos como usar. rsss. Também, por lá, corria a década de 60. E me lembro de ter estragado o laço do meu vestido de organza, rosa com bolinhas brancas. Usado somente pra festas e missa. rsss. (era filho único) a goma de mascar grudou, e não teve nada que tirasse sem rasgar o tal chiclete do laço do vestido. Fiz mais uma bela e nostálgica viagem em sua escrita. Um gr abraço.
13/03/2012 21:48 - EDNA LOPES
Que lindas e especiais lembranaças!Acompanhei cena a cena, feito um filme!Não me lembro do "primiro chiclete", mas lembrei com saudade do primeiro algodão doce e da primeira caxinha de uva-passa do baleiro da porta da escola da cidade.Eu, menina da roça, vi a modernidade!E era só o início dos anos 70!Abraço!
Da série:
MEMÓRIAS DE MINHA RUA
(13/03/2012)
Lembro-me de que ventava muito naquela tarde.
A tênue cortina de poeira que erguia-se do chão, rodopiava entre os arbustos, desenhava no ar estranho passo de dança e cruzando as portas ia tomando assento entre a fileira de garrafas nas prateleiras do armazém Andrade.
As últimas laranjas no quintal adoçavam nossas interioranas existências.
Estávamos, meus primos e eu, inquietos naquele dia. Atentávamos aos roncos que cruzavam a estrada do Riozinho,sabedores de que num dos automóveis chegaria a visitante.
A ventania que eriçava capins à beira da estrada, empurrava as janelas da venda enquadrando numa delas, em opaco, a bodegueira e seu curioso (quase sinistro) par de olhos costumeiramente "assuntantes" de quem passava, quem chegava , quem seguia...
Seu olhar sempre fora dividido entre as tranças de crochês e o "assuntamento" da estradinha defronte ao armazém.
Desta vez , quando o luxuoso automovel de aluguel foi estacionando lentamente ela pode perceber tratar-se de alguém vindo de longe. Alguém que não lhe era do conhecimento.
[Hóspedes embarcados,como costumava dizer]
Do outro lado da estrada , na casa de vó Izaura ,davam-se os ultimos retoques nos preparativos da espera.
Gritos esganiçados ecoaram pelos terreiros:
-Ela chegou !...
Tia Iracema chegou !...
Enquanto em desabalada carreira buscáva-mos a estrada, na saleta com móveis antigos a figura grisalha de vovó era engolida pelo grande espelho de moldura preta.
No lado oposto da parede uma imagem de Nossa Senhora da Piedade deixava-se engolir por igual, com um olhar materno sobre a cabeça da outra a ajeitar o grampo que lhe prendia os cabelos.
A esta altura nós,a netarada, estávamos juntos do automóvel. Enquanto o motorista retirava as bagagens, pudemos observar que desta vez ela não viera só. Fazia-se acompanhar
das "crianças de tia Elzi".
Marlene e Luiz Alberto, nossos primos pontagrossenses, afeitos a alguns esnobismos.
Acostumados à vida num grande centro,aproveitavam todas as oportunidades que se ofereciam para reafirmar nossa condição de matutos e capiáus.
A volumosa bagagem espalhada pelo chão fora rapidamente dividida e ,feito formigas carregadeiras, tomamos o rumo do casarão fazendo transparecer nosso contentamento pela chegada.
Tia Iracema, assim a chamáva-mos, era na verdade a irmã mais velha de vovó, a quem carinhosamente denominava "Nina".
De estatura mediana, gorducha, sempre muito bem vestida, trazia maciez de veludo na voz.
Era sempre esperada com carinho e aqueles seus ares aristocráticos , envolvidos em suave perfume de Lavanda Inglesa, representavam ao nosso mundinho interiorano a personificação de uma de fada madrinha.
[Aquela à quem se esperava com ansiedade e ia deixando um rastro antecipado de saudade ao cogitar-se imaginar sua partida]
Na escolinha , ao lado da casa de vovó, magnólias ofereciam-se em brancura e aromas pelos desvãos da cerca. Folhas lustrosas de um verde vigoroso pendiam,aguçando a sensibilidade da nossa fada.
As reverências sobre a beleza das flores acercaram-se de tal sutileza que nos pareceram embrulhadas em papel celofane.
Por conta disso, uma cheirosa flor lhe fora mediosamente oferecida.
Enquanto vovó , debruçada à janela , aguardava com olhos marejados a pequena comitiva, os primos visitantes apressavam-se em abrir uma das malas de onde surgiram pequenos embrulhos de presentes cujos conteúdos nos eram totalmente desconhecidos.
-Isto chama-se "chicletes", adiantou Marlene.
É a última moda em Ponta Grossa; têm sabores de frutas e de hortelã. Com êles podem-se fazer bolas imensas, o que é muito chic quando se está dançando "Twisty".
Vocês devem tomar cuidado para não engoli-los. Mastiguem-os, soprem, façam as bolas e depois...
Recebidas as primeiras instruções partimos para a parte prática e foi uma sensação indescritível.
De início ficamos um tanto confusos mas , aos poucos , fomos pegando habilidade com a coisa.
Decorridos alguns dias, foram-se os visitantes.Os sabores de menta e frutas desapareceram.
Restara tão somente aquela coisa ,meio pegajosa, conservada cuidadosamente segundo as orientações da prima Marlene:
-"Uma pequena trouxinha que , grudada à cabeceira da cama, pode ser reaproveitada,e assim, usada por muuuuiiiitas vezes".
Isto ocorreu no final dos anos cinquenta, inicio dos anos sessenta.
Pura infantilidade !
Um fato corriqueiro atrelado aos acordes de "Dominique e Estúpido cupido" que ouvíamos incessantemente pela rádio local e, acompanhávamos cantarolando com bocas de chicletes.
E como foram marcantes aquêles presentinhos !...
Algo que hoje retomado, faz-me lembrar o comercial do primeiro sutiã pela televisão.Eu diria que depois daquela nossa experiência, ficou comprovado de que "O primeiro chiclete a gente nunca esquece !"
Decorridas agora,umas tantas décadas, tenho a convicção de que meus primos, igualmente, guardam na memória a enfumaçada tarde de um agosto distante quando bolas de chicletes , em cores e sabores variados , explodiram em frente à casa da vó Izaura.
Sòmente alguns meses depois ,a guloseima chegara às prateleiras do armazém Andrade,alardeada pela "assuntante" entre a capiauzada ,como “a grande novidade".
Nós, porém, já a conhecia-mos...
Texto reeditado.
Preservados os comentários ao texto anterior:
14/10/2016 10:34 - Lourdes Bernadeth Berton [não autenticado]
Dominique,nique,nique,siempre alegre cantado...esperando alguém que possa amar....o seu príncepe encantado, seu eterno namorado que nao se cansa de esperar........Parece até que acabo de por o disco na vitrola.....O chiclets nao me impactou; a Maca do Amor, aquela com um verniz brilhante por cima, no entanto, me deixou impressionada a primeira vez que vi. Como sempre os teus textos sao como entrar na máquina de viajar ao pasado.
17/03/2012 20:22 - Anita D Cambuim
Tias ricas são deliciosas. Sorte de quem as teve ou tem. rs.
16/03/2012 13:37 - YARA FRANÇA
Nada como a infancia pra fazer desses momentos, algo digno de nota.Tb lembro até da embalagem, listrada de vermrlho azul e branco, o famoso ping-pong. Estamos ficando velhos.
15/03/2012 10:41 -
Bom dia! Quem prazer delicioso ler uma crônica saudosista que nos remete a um passado feliz. Você escreve com criatividade e muita imaginação. Parabéns, amei!!! Grata pela visita, foi um prazer. Fotos de preciosa raridade. Abraços.
13/03/2012 22:16 - Lenapena
No armazém do meu avô Totó, (único lá na vila) o "Chiclete de bola" chegou, e nem sabíamos como usar. rsss. Também, por lá, corria a década de 60. E me lembro de ter estragado o laço do meu vestido de organza, rosa com bolinhas brancas. Usado somente pra festas e missa. rsss. (era filho único) a goma de mascar grudou, e não teve nada que tirasse sem rasgar o tal chiclete do laço do vestido. Fiz mais uma bela e nostálgica viagem em sua escrita. Um gr abraço.
13/03/2012 21:48 - EDNA LOPES
Que lindas e especiais lembranaças!Acompanhei cena a cena, feito um filme!Não me lembro do "primiro chiclete", mas lembrei com saudade do primeiro algodão doce e da primeira caxinha de uva-passa do baleiro da porta da escola da cidade.Eu, menina da roça, vi a modernidade!E era só o início dos anos 70!Abraço!