Meu cerco na Lapa

Não, não essa Lapa que foi berço da boemia carioca, nem a outra que foi bairro operário de São Paulo, mas a Lapa que é cidade histórica no Paraná. Ali onde paravam tropeiros e onde teve o lugar o tal do “Cerco da Lapa”, em meio às travessuras da Revolução Federalista. A Lapa é uma cidade a 69 quilômetros de Curitiba – é uma distância segura. Chego até lá depois de ver muitos pastos, florestas de araucárias, paisagens bucólicas. Sou mais um turista. Os turistas estão para a Lapa assim como os pombos estão para Curitiba: tomando conta das praças, em número cada vez maior, mais ousados do que nunca e já devidamente incluídos na rotina da cidade.

Chego e não vejo nenhum tropeiro. O centro histórico (se é que há algum outro) é composto por 14 quarteirões com ruas de calçamento. É como se o centro de Curitiba fosse engolido pelo Largo da Ordem. Os homens urbanos veriam com muita indignação a calçada da Rua Francisco Braga, sem dúvida a mais estreita do Paraná. Mal cabe um lapeano em cima dela, e esse lapeano geralmente encontra outra pessoa vindo no sentido contrário. Provavelmente se trata de uma estratégia da prefeitura para promover a gentileza. Cedi a passagem a alguns bons lapeanos.

Meu Deus, como tem prédio histórico. Uma quantidade considerável de casas com placas que explicam a razão pela qual nós devemos reverenciá-las por toda a eternidade. Vejo ali a casa em que veio ao mundo o governador Ney Braga. Muitos governadores do Paraná ainda irão nascer, mas poucos terão a sua casa como objeto de visitação. Dizem que a Lapa foi berço de muitos cidadãos notáveis na história do Paraná. Eu não duvido. Penso, no entanto, em notáveis desconhecidos que figuram apenas na minha árvore genealógica. Ali viveu o pobre Theodoro, filho de mameluco. Já era velho e colhia para o sustento. Ali nasceu Ermenegildo, mas nasceu sem ser desejado e foi abandonado. Acabou acolhido por uma boa família lapeana. Histórias minhas, no berço da Lapa.

A igreja de Santo Antônio traz uma inscrição acima da porta: 1784. Há mais de dois séculos, quando o Paraná ainda era São Paulo, quando o Brasil ainda era Portugal, era a este lugar que afluía a comunidade católica da Lapa. Neste dia, a igreja não está aberta, mas há uma porta de onde se pode enxergar tudo o que existe lá dentro, e é dali mesmo que um senhor e duas senhoras entregam as suas orações – admirável manifestação da fé lapeana.

Há uma rua XV de Novembro, como sói haver em todas as cidades, mas na Lapa é uma rua pacata. São poucos os carros, e dentro de um deles, com o vidro aberto, enxergo um motorista de chapéu que cumprimenta pedestres. E pedestres cumprimentam outros pedestres, provando que Curitiba não exerce mesmo a menor influência sobre a cidade.

Há também as coisas da guerra, alguns canhões, um panteão de heróis mortos em combate, uma estátua do General Carneiro... Isso pouco me interessa. O verdadeiro cerco da Lapa é a resistência desses prédios, frente à especulação imobiliária.

Uma garota se aproxima de mim com uma prancheta e pergunta se sou da Lapa. Tenho uma doce vontade de mentir, dizer que sim, sou da Lapa desde os primórdios. Não tenho coragem de dizer que sou da capital, então apenas nego, tristemente:

– Não, eu não sou da Lapa.

Foi uma enorme decepção para ela, que não quis mais papo comigo. Caminhou então na direção de outro cidadão – dessa vez, um pacato lapeano.

milkau
Enviado por milkau em 08/10/2017
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