Insanidades cotidianas
Certa vez uma professora me disse: "a vida na atualidade é feita em crônicas" (...) confesso que, por ingenuidade, concordei, mas não entendi. E eis que hoje a vida resolve me mostrar o significado disso...
Passei a tarde toda em um curso intitulado "Capital-imperialismo e a medicalização da vida". Foram vários momentos de profundo debate sobre a configuração da sociedade atual e como o processo de medicalização tem suas raízes mais profundas (o sistema capitalista) do que apenas o "discurso", raízes que precisam ser entendidas em sua concepção mais concreta possível, para não cairmos (achando que estamos mudando algo) na sua perpetuação.
Saí do curso um pouco triste, pensando em como conseguiria colocar em prática tudo aquilo que venho estudando... E com essas reflexões fui caminhando até o terminal Umuarama. Chegando lá, uma onda de acaso fez com que eu conseguisse pegar no mesmo instante o T120. Agradecendo pela sorte, mas ainda pensativo sobre o curso, segui até o terminal central (onde pegaria outro ônibus) e, ao desembarcar, logo avistei o T131, seguindo assim meu caminho.
Cheguei à casa da minha amiga, que pediu para eu passar uns dias na casa dela (a colega de apartamento viajou e ela não gosta de ficar sozinha), ao chegar ela estava organizando a casa e me pediu para ajudá-la, após passar um pano na sala eu disse: "Val, vou descer o lixo, tá?" (...) e é aqui que um dos momentos mais epifânicos da minha vida começa.
Quando cheguei à rua, para colocar a sacola imensa na lixeira, deparei-me com um senhor revirando o lixo. Como eu sabia que a Val separa os recicláveis eu perguntei: "O senhor vende reciclável? Porque aqui tem uma sacola separada". Ele virou, olhou-me nos olhos e respondeu: "Nada! Eu tô procurando comida mesmo e uma blusa para colocar, porque tá muito frio, né?"... Neste instante eu lembrei que havia uma blusa de frio minha lá em cima no apto. Imediatamente falei: "olha, eu tenho uma blusa lá em cima, o senhor quer?"... E ele, acanhado, começou a disser: "olha, as pessoas acham que eu sou louco, eu tenho medo de gente... Moro no meio do mato mesmo, mas às vezes dá fome, daí eu preciso vir atrás de comida. Eu fico no mato porque às vezes eu bebo daí eu acho que as pessoas podem me fazer mal e me dá medo, você não vai fazer nada comigo não, né?”, virei e disse: “claro que não! Pode ficar tranquilo, vou lá e volto rapidinho, tá?”.
Subi correndo as escadas do prédio, cheguei e expliquei o que estava acontecendo para minha amiga, que logo se pós a arrumar uma “marmita” com as coisas que tínhamos na geladeira, peguei a marmita, a blusa e desci... Chegando lá eu entreguei tudo para ele e, com um olhar de surpresa, ele me disse: “nossa, tudo isso, muito obrigado rapaz!”, quando ia fechar o portão para entrar ele gritou: “hey, menino, você faz o que da vida”, e eu respondi: “faço história”... Neste instante, ele parou e ficou me olhando uns segundos, sentou na guia da rua e disse: “vamos conversar mais, eu gosto de história, me conta uma história aí!”, ele foi sentando e começou a comer a marmita que a Val tinha feito. Sentei do lado dele e comecei a conversar, foi quando ele virou e me disse: “Você gosta de Fernando Pessoa? Dostoievsky? Karl Marx? Guimarães Rosa? Clarice Lispector? Não, claro que não, ele não pode gostar disso, mas ele faz história... então ele deve conhecer. Eu gosto de Tabacaria do Pessoa, ‘come chocolate pequena’... Ah, da Clarice eu acho ela muito boa, apensar dela ser mais louca que eu... Guimarães então... Iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiih, louco, louco de tudo! Edgar Allan Poe, ah, aquele lá sim era louco... Mas hey, me perdi, eu sou doido também, HAHA, me fala, tu já leu Karl Marx?”
Fiquei perplexo, não conseguia responder... Só consegui dizer: “o senhor já leu tudo isso?”, e ele: “tudo isso? Isso não é nada... a vida não é nada, isso é só letras. Letras e papel... Sabe o que você precisa? Ler mais coisas que mostrem a realidade! Vocês vivem presos igual passarinho... Tudo engaiolado.... Eu vivo a liberdade... O corvo, Edgar Allan Poe, você deveria ler... Ah, mas ele não está preparado para tudo isso... Mas ele é um menino bom, não sei, pelo menos ele não me machucou.... Você gosta do poema em linha reta? Não eu não sou nada, nunca serei nada... Vamos recita comigo!”....
E assim fiquei ouvindo ele durante uns quinze minutos, até que ele resolveu ir... Levantou e saiu, novamente quando fui entrar ele me chamou, olhei para trás e ele gritou: “BOA NOITE, MENINO DOIDO... Me fala aí, qual livro que você mais ama?”, eu virei e disse: “Felicidade Clandestina, da Clarice Lispector”... Ele já um pouco mais distante gritou: “OBRIGADO, MAS LEIA A RUA DAS ILUSÕES PERDIDADS, DO JOHN STEINBECK, VOCÊ VAI GOSTAR!”...
E assim terminou nosso encontro. Entrei. Fechei a porta... Lembrei do curso e sorri.
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