Meu adorável bem-ti-vi
Algumas atividades que nos dispomos a fazer em nossas casas, principalmente quando se tem um bom quintal, são conhecidamente prazerosas. Cuidar de plantas e árvores, por exemplo. Exige certa disciplina, algum conhecimento e muito trabalho, mas é uma ótima terapia. É gratificante acompanhar o desenvolvimento das hortaliças, das plantas ornamentais e o crescimento dos frutos das árvores. Não existe melhor momento na hora da colheita de algum produto, ainda mais quando ele vai ser levado direto para a sua mesa.
Mas, é justamente neste quintal que, inquietos, inventamos outras coisas para fazer. Mudamos a disposição de tudo, reorganizamos aqui e ali, muitas vezes sem a menor necessidade. E foi num dia desses, fazendo varrição, limpando a folhagem e descartando materiais é que decidi deslocar uma boa quantidade de tijolos de um canto do muro para o centro do terreno, sob o pretexto de aproveitar o espaço para outra coisa. Comecei removendo uma pilha inteira de uns 200 tijolos mais ou menos, para um local dez metros ao centro. Foi um trabalho árduo, que vi como importante.
Mas, vamos voltar um pouco no tempo, pois eu queria falar de um sorrateiro bem-te-vi. Isso mesmo! Um pássaro da família dos Tiranídeos que é, provavelmente, um dos mais populares do nosso país. Há tempos que o vinha observando por ali, mas, desta vez, ele estava abusado. Faltava remover a última fileira de tijolos quando notei que o danado estava muito próximo. Num certo momento, com sede, resolvi ir tomar água na minha varanda. Voltei-me um pouco, no caminho, para conferir o comportamento do bicho. Foi quando vi que ele pousou sobre a pilha de tijolos e permaneceu olhando para baixo como se procurasse alguma coisa entre as fendas. Logo voltei aos tijolos e percebi que ele sequer se assustou. Permaneceu quieto, parecendo estar cheio de coragem. Fiquei intrigado e pensei comigo: em breve estarei pegando este bem-te-vi com as mãos! Fiz de conta que não o percebi e ele pareceu fazer o mesmo em relação a mim. Foi aí que, ao carregar dois tijolos da pilha do chão, vi que ele, imediatamente voou para mais perto e começou a bicar o solo vorazmente. Pequeninas minhocas, ou sei lá o quê, baratinhas e outros minúsculos insetos foram sendo sistematicamente devorados. Tive vontade de rir de mim mesmo, por não ter percebido que esta aproximação tinha um motivo óbvio, porém muito forte: a própria subsistência do passarinho, num outono escasso de alimentos. Com muito prazer, retirei todos os tijolos deixando uma boa área descoberta e cheia de insetos para que ele se banqueteasse à vontade. Depois disso, passei a ficar mais atento ao quintal lembrando que, por debaixo de pedras, madeiras ou outra coisa qualquer, sempre haveria um almoço para pássaros. Fiz mais. Passei a comprar regularmente milho moído, o que chamamos por aqui de canjicão, para ajudar estas aves em suas necessidades durante esta difícil estação climática.
Todavia, quanto ao bem-te-vi, ficou comigo uma pequena decepção, pois cheguei a acreditar que ele tivesse se afeiçoado a mim de verdade, e não apenas pelas refeições que eu lhe proporcionava. Quem sabe eu não poderia um dia, carregá-lo nos ombros? Conformei-me com a situação, não fosse uma agradável surpresa que tive outro dia, quando voltava para casa. Um vizinho me indagou:
- Você está domesticando pássaros em seu quintal?
Surpreso com a pergunta, respondi:
- Não. Por quê?
Respondeu o intrigado morador:
- É que outro dia quando você passava na minha porta, percebi um passarinho te acompanhando. Ora ele pousava nos muros, ora nas árvores ou nos fios dos postes. Ele estava te seguindo de alguma forma. Respondi sorridente:
- Era um bem-te-vi?
O vizinho afirmou:
- Não deu para ver direito. O que vi foi que ele te acompanhou por todo o quarteirão. Achei que tinha alguma coisa a ver com você.
Mais feliz ainda, finalizei:
- Não, eu não percebi. Para ser sincero, eu não entendo nada de adestração de animais. E se for pássaros, pior ainda. Deve ter havido algum engano. Ao que o vizinho concordou:
- É. Talvez eu tenha me enganado.
Chegando em casa, veio-me uma enorme vontade de mexer no meu quintal.
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 05/10/2017
Reeditado em 05/10/2017
Código do texto: T6133805
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