A Joaninha e alguns vícios
Estava perdido nos labirintos do meu pensamento, buscando um assunto para escrever nessa crônica, quando uma joaninha pousou nos meus ombros.
Pensei dar um peteleco, mandar o bicho longe, mas logo a cor de suas asas tingiu meus olhos e tudo parou.
Como a natureza conseguiu aquele vermelho com pintinhas pretas, tão simétricas, tão perfeitas?
Por coisas assim, acredito na existência de Deus.
Bebi um gole de coca cola.
Atualmente, beber coca-cola é meu único vício.
Deixei a Joaninha caminhar sossegada pelo meu ombro e fiquei imaginando que no lugar dela, de posse daquele belo par de asas, não ficaria preso entre quatro paredes, escalando um corpo desconhecido, transpirante, quase medonho; estaria atravessando uma vasta planície, repleta de mistérios e coisas desconhecidas, encarando o verde, fazendo do sopro do vento uma espécie de canoa, na qual, feito um surfista dos cabelos espalhados ao vento, ergueria meu corpo num movimento oscilante, mas daqueles de deixar um sorriso na cara.
E não sentiria medo, apenas me deixaria levar até o lugar mais lindo que possa existir.
De repente, um cheiro de carne de panela despenca pelo ar.
Talvez a Coca-Cola não seja meu único vício.
Não sei se o pronome “eu” possui plural, mas sei que dentro de mim repousam vários eus e alguns deles, às vezes, me escapam, tomados pela loucura, a insanidade completa ao tentar enxergar os olhos de um inseto.
A curiosidade mata o meu decoro, armado por duvidas insanas: qual a serventia dessa sua antena, senhora Joaninha?
Percebes a minha existência?
Será que vale a pena lhe contar sobre a nefasta verdade humana?
Novamente acredito na existência de Deus, que não se mostra, para Ele sou apenas como aquela Joaninha...
Será?
Tenho o eterno vício de me prender em laços de dúvidas.
Qual será o pensamento da Joaninha?
Na loucura, às vezes me desespero: ei, joaninha, eu estou aqui, eu e o vento invisível!
E num instante, me apego à pequena fagulha da raiz inexata, mãe de meus sentimentos, aquela que permanece apensa, na rachadura da montanha que desaba, se transformando numa rápida certeza: Deus é como o vento, exatamente aquele que Espinoza contou.
Aliso a pintinha preta do bicho e a imagem me sugere o momento da criação, quando Deus fez primeiro o besouro, achou tão feio que resolveu pintá-lo de vermelho e encher de bolinhas pretas.
O bicho percebe meu desassossego, bate as asas e voa até a ponta da mesa.
Fico resmungando, chateado, tentando pensar noutra coisa e deixar o inseto em paz.
Lembro então que sou viciado em frases, agora mesmo, um delicioso aforismo de T. S. Eliot me ocorre: “Num país de fugitivos, os que andam na direção contrária parecem estar fugindo”.
Ela continua longe.
Penso em maldades: fique sabendo Joaninha, se eu quiser posso lhe dar um fatal peteleco com os dedos e acabar de vez com sua vida frágil.
Sorte sua que hoje tem jogo do Botafogo e estou de bom humor.
Sou viciado no Botafogo.
Sinto uma ardência no estômago. Será a coca-cola ou fome?
Fome, com certeza.
Em algum lugar da casa deixei metade de um bolo de fubá.
Mais tarde vou coar um café.
Tem coisa melhor que café com bolo de fubá?
Sou viciado nisso também.
Ando um tantinho viciado no whatsapp, embora algumas mensagens e os terríveis erros de português me causem aborrecimento e irritação.
Com toda certeza desse mundo a coca-cola não é meu único vício.
Anderson, meu irmão, chama nossa mãe de Joaninha.
Sabe-se lá o porquê, de repente, para ele, Vidalvina virou Joaninha.
Sou viciado na minha mãe, na mãe dos meus filhos, em todas as mães. Dona Creuza, mãe do meu melhor amigo, certa vez me convidou para um almoço surpresa. Serviu camarões recheados numa abóbora, sem saber que eu detesto camarões e não como abóbora nem por remédio. E ainda assim o meu sentimento pela dona Creuza sempre foi o do mais puro amor fraternal.
Isso já faz algum tempo, nem sei se dona Creuza continua viva. Agora, maduro e vivido, talvez eu comesse o prato que ela tão delicadamente me serviu...
O tempo passa depressa demais, estou chegando àquela fase da vida que bom mesmo é voltar a ser criança, permitir algumas loucuras, como essa de conversar com um inseto, que talvez me tenha como um porto seguro.
É o que sinto assim que ela retorna a pousar no meu ombro.
Mas que inseto lindo!
Sei, entretanto, que meus olhos logo irão acompanhar o vôo de despedida dessa Joaninha, um tanto torto até encontrar a liberdade após a janela.
Surgiu do nada e para o nada partirá, deixando em meu rosto os ares úmidos do adeus.
E já sinto saudades.
Acho que fiquei viciado em Joaninhas...