PRAXEDES, SUA EMPREGADA E A ORDEM SUPREMA

Praxedes sempre se considerou uma pessoa dotada de raro senso de organização. Com efeito, seu com¬portamento costuma ser bastante metódico no dia-a-dia. Quando chega à casa, de volta do escritório, e não tem outro compromisso for¬mal, troca de roupa, cuidando para que as chaves do carro e as da re¬sidência saiam dos bolsos do pale¬tó para cima da cômoda do quarto de dormir. Se for final de semana, as chaves saem dos bolsos da calça para o mesmo móvel. Já os óculos, nas raras vezes em que os tira, pos¬suem seu posto cativo sobre a mesa de cabeceira. Praxedes mantém dis¬cos, livros e outros objetos pessoais nos mesmos lugares de hábito.

O organizado cidadão gosta de contrastar sua conduta cotidiana com a da esposa, que vive a pergun¬tar onde andam os óculos, as chaves e até mesmo a própria bolsa, supos-tamente sua companheira insepará¬vel. Apesar dessa comparação sem¬pre a seu favor, Praxedes ressalva que não pretende valorizar seu per¬fil metódico excessivamente. Revela perfeita ciência de que sua conduta tão disciplinada decorre, em larga medida, do reconhecimento de ser um notório “desligado”. Distraído do jeito que se diz ser, na realidade, somente graças ao método e à disci¬plina consegue reduzir os riscos de ficar na busca permanente de obje¬tos pessoais, como costuma ocorrer com sua cara metade.

Cedendo à ocasional tentação de dar explicações adicionais sobre seu espírito de organização, recorre ao bom humor para esclarecer que quem possui um nome de origem grega deve inspirar-se na grande tradição da lógica aristotélica e so¬crática. Praxedes acrescenta que, nos seus tempos de estudante (já longínquos, por sinal), teria sido leitor assíduo desses filósofos, bem como de Hegel e de outros pensa¬dores. Reconhece, no entanto, que mal se recorda da essência dessas leituras e conclui, novamente bem humorado, que as lições filosóficas, ora fugidias em sua lembrança, não lhe fazem falta no dia-a-dia. Acre¬dita na sua capacidade de organiza¬ção, lógica e metódica, com a qual vive muito bem, obrigado.

Seu modus vivendi implica, como não poderia deixar de ser, certos problemas de convivência humana, tanto na esfera profissio¬nal quanto na doméstica, provo¬cados pelo constante cuidado de manter em ordem papéis, livros, discos e um ou outro objeto de-corativo nas estantes e mesas do seu cotidiano. Além de ler livros, ouvir música e assistir a filmes e documentários em DVD, Praxedes gosta de contemplar suas coleções desses variados instrumentos de lazer, bem como as poucas peças de artesanato que possui, dispostos sobre mesas e prateleiras de forma ordenada, de acordo com critérios pré-estabelecidos. Na ordem em que são colocados, fica fácil, em rápido passar de olhos, visualizar o conjunto de obras disponíveis de História das Américas ou de músi¬ca clássica ou, ainda, de aventura e ficção.

Seus critérios para ordenar todo esse patrimônio não são, nem poderiam ser, totalmente parti¬lhados por outros seres humanos com quem o pretenso discípulo de Aristóteles divide o espaço ambien¬te. Da dileta esposa aos colegas de trabalho, sempre haverá percepções e modos de organização que dife¬rem dos dele. Para não se dispersar demasiado nos problemas de con¬vivência daí decorrentes, melhor é ocupar-se do mais contundente, do mais grave, do mais repetitivo e exasperante do ponto-de-vista de Praxedes. Nada supera a incomen¬surável dificuldade do seu convívio diário – ou quase – com essa figura atentatória à ordem que é a empre¬gada doméstica.

Antes que algum ativista de di¬reitos humanos de plantão venha a insurgir-se contra o sofrido Praxedes, acusando-o de pre¬conceituoso, elitista ou o que for, cabe es¬clarecer que sua em¬pregada doméstica, Firmina, trabalha na casa há mais de dez anos e desfruta de sua sincera simpatia, pela índole tranqui¬la, honesta, zelosa e dedicada ao servi¬ço e à família. Além disso, mostra-se bem humorada de manei¬ra geral, dificilmente externando sinais de irritação ou de contrariedade, nem mesmo quando a peste do gato da vizi¬nha salta da varanda dela para a do apar¬tamento de Praxedes e, sem conseguir fa¬zer o inverso, põe-se a miar, num misto de arrependimento e desespero. Todas as ocasiões em que isso ocorre, lá vai a empregada a socorrer o bichano, levando-o de volta para a vizinha pacientemente.

A família é uníssona em ma¬nifestar que Firmina é uma boa alma, dessas pessoas simples e admiráveis por suas muitas qua¬lidades. Feitas essas ressalvas ne¬cessárias, persiste a circunstância de que o organizado cidadão sai do sério nas dezenas de vezes em que se vê obrigado a reordenar seus poucos bens pessoais que a zelosa desarrumadeira manuseia em seus propósitos (louváveis, não resta dúvida) de limpar o pó. O pequeno presépio artesanal de madeira, originário da Venezue¬la, é uma das maiores vítimas da Firmina. São José e Nossa Senhora jamais permanecem em postura de contemplação ao Adorado Fi¬lho na manjedoura. Um ou outro, quando não ambos, estão sempre colocados das mais diferentes ma¬neiras, olhando noutra direção, como se nem quisessem mirar o Menino. Mais de uma vez Praxe¬des encontrou a manjedoura de cabeça para baixo, como se fosse uma estatueta vertical. Tudo bem: cabe dar o desconto de que, sendo as três figuras talhadas pelo artesão de forma abstrata, a Firmina nem sequer se dá conta de estar diante de um presépio.

No caso de outros objetos nada abstratos, porém, não parecia ha¬ver razões para a desarrumação, o que fazia chover impropérios quase diários, em pensamento, a respeito da diligente serviçal. Sem falar de variados casos, como os livros re¬postos na estante com as lombadas para dentro, o rolo de papel higiêni¬co no banheiro tem sido objeto de permanente litígio. Praxedes sem¬pre o colocava com a tira a ser pu¬xada de cima, o que evita o contato do papel com a parede, bem assim com a parte baixa do porta-papel higi¬ênico de louça. Se o papel acabava sem que o metódico cida¬dão pudesse mudar o rolo, Firmina inva¬riavelmente o punha de outra maneira, fa¬zendo com que a tira deslizasse por detrás, tocando a parte bai-xa do porta-papel e a parede.

Um dia, cansa¬do de rearrumar o papel higiênico e de continuar a esperar que a esposa passas¬se à Firmina a com¬petente orientação na matéria, Praxedes perguntou direta¬mente à empregada por que ela colocava o rolo daquele modo. Para quem aguarda¬va uma reação estu¬pefata, a estupefação foi dele quando ela disse que, daquele jeito, era mais fácil cortar o papel. Apanhado de surpresa, o cultor da racionalidade limitou-se a expressar um “ah, sim”, de tom compreensivo, embora com a intenção do contra-ataque, rumo ao xeque mate, que não foi dado, entretanto. Em pensamentos que lhe vieram em frações de segundos, reconheceu que Firmina lhe dera uma explicação lógica e que, afinal de contas, a simplicidade da ques¬tão não justificaria maior debate.

Dias depois, em mais um mo¬mento de exasperação, indagou da empregada por que ela alterava a posição do porta-retrato que fica¬va em uma das mesas de cabeceira com a foto do casal no dia do casó¬rio. Praxedes entendia que o porta¬-retrato deveria estar sempre posi-cionado de modo que qualquer um que entrasse no quarto visse o casal bem de frente. Firmina explicou que enviesava a foto para protegê¬-la melhor da luz do sol que entra¬va por uma das janelas do cômodo. Mais uma explicação racional e inesperada, refletiu ele, sem contra¬-argumentar.

Seguiram-se outras perguntas e respostas igualmente compre¬ensíveis, até que o inconformado Praxedes quis saber a razão dos livros colocados ao contrário na estante. Desta vez, pensou exul¬tante, ela terá de reconhecer que se distraiu e cometeu um erro. O sorriso de vencedor que se pre¬parava para abrir desvaneceu-se, todavia, quando Firmina explicou que, como os livros viviam encos¬tados no fundo da estante, às vezes deixava uns e outros ao contrário para que tomassem mais ar e não pegassem bolor.

Restou ao cidadão que tanto preza seu perfil organizado con¬siderar que também havia diver¬gências de método e de substância entre os maiores filósofos da huma¬nidade. Na verdade, a existência de opiniões distintas é que teria permi¬tido a evolução da espécie humana. Deu-se assim por satisfeito ao des¬cobrir que Firmina juntava às suas muitas qualidades a da capacidade de refletir e ter ideias próprias sobre a organização do lar.

Continuou a xingá-la em pen¬samento, não obstante, todas as vezes em que teve de restabelecer sua ordem ideal dos livros, discos e tudo o mais.

in Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP