LER O MUNDO E LER O SER HUMANO
LER O MUNDO E LER O SER HUMANO
Nelson Marzullo Tangerini
Sei que irão dizer que o escritor deveria ser um professor de esperança. E que nós, escritores, deveríamos pôr flores coloridas onde não há sentimento algum, onde o cenário cinzento e nebuloso predominam. Deixo esta tarefa para o autores de autoajuda, que moram em suas torres de marfim, onde contam os níqueis das vendas de seus livros. Não sou ufanista. Nem romântico. Ao longo de toda a minha vida venho lendo Machado, Zola, Camus, Nelson, Drummond, entre outros. E a esperança em mim há muito já se esgotou. Mais pareço aquele Raul Seixas de Ouro de Tolo: “Mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado...”
Vivemos entre atiradores malucos, terroristas psicopatas do Estado Islâmico, guerra entre policiais e traficantes, guerra entre traficantes rivais, assaltos, roubo de carga, o discurso belicista de Kim e Trump e políticos vigaristas que, ao longo do tempo, guardam sua fortuna roubada dentro de malas e caixas de papelão.
Camus escreveu que “Cada geração é, sem dúvida, chamada a reformar o mundo. A minha sabe que não vai reformá-lo, mas sua tarefa talvez seja ainda maior. Consiste em evitar que o mundo se destrua”.
Da janela da escola onde trabalho, na Boca do Mato, avisto uma comunidade. E há outras espalhadas por toda a cidade do Rio de Janeiro. Há casas boas. E há barracos amparando outros, na esperança de um segurar o outro, caso uma forte chuva resolva tirá-los daquele local. Muitos estão construídos em área de risco. De lá, avistam o Rio de Janeiro dos ricos. Volta e meia convivem com tiroteios intensos. Homens, mulheres e crianças expostas às balas perdidas ou a balas encomendadas. Muitos barracos aparentam por fora a pobreza, enquanto, por dentro, o luxo predomina. Mal plagiando Clarice, seria uma felicidade clandestina. Humanizar a comunidade, trazer a comunidade para o asfalto, acabar com os guetos e com a exclusão é acabar com a carreira daqueles políticos que oferecem tijolos e sacos de cimento, enquanto faturam votos em cima de pessoas carentes e humildes.
O cancioneiro popular expõe em inúmeras canções a beleza e as desvantagens do morro: pertinho do céu, onde a passarada fazia uma sinfonia de pardais para o poeta em mais um samba; onde florescia o sonho de Conceição em ganhar o mundo.
2017, século 21, e os sucessivos governos não resolvem o problema da moradia. Não resolvem tantos outros problemas, como Saúde e Educação. Toda aquela gente, na maioria descendentes daqueles africanos que foram sequestrados da África e trazidos para a América como escravos, já deveria estar residindo em moradias humanas e decentes. Afinal, seus antepassados tomaram porrada, sofreram humilhações e trabalharam de graça.
O leitor irá dizer que sou mais um burguesinho escrevendo sobre o morro, onde muitas vezes estive para visitar amigos ou participar de festas de aniversário de alunos: estive em suas casas onde o mestre foi recebido, pelos pais desses alunos, como um rei, como aquele que abre as portas para um futuro iluminado para seus filhos. Talvez concorde com os detratores. Hoje, seria muito difícil visitar amigos em comunidades onde traficantes exibem impunemente seus fuzis AK47, de fabricação russa, e impõem uma ditadura militar autoritária e desumana.
As pessoas humildes e trabalhadoras que ali vivem [e muitos são alunos ou ex-alunos meus], por não terem condições de morar entre os ricos e frequentar os mesmos espaços, sofrem com toda sorte [ou má sorte] de problemas. Sofrem com a discriminação, que vem desde quando seus antepassados desembarcaram na Região Portuária do Rio, trazendo a África no pensamento, na alma e nas veias.
Parece que o morro não tem vez, mas se derem vez o morro, certamente toda a cidade irá cantar. A desigualdade e o preconceito continuam cada vez mais fortes e desumanos; a violência, consequentemente, se faz presente, como forma de reagir com revolta a toda esta violência, que é a fome, a indiferença e a exclusão.
Infelizmente, a falta de leitura, a falta de memória e a falta de conhecimento de História, levam a burguesia a acreditar em métodos duros e repressivos para a correção de um problema que começa quando os brancos europeus caçaram seres humanos pensando serem animais de carga. Costumo dizer que a farda seria um fardo – mais uma vez.