Assim ou ... nem tanto. 112
A transformação
Fui morrendo. Um dia deixei de sentir os pés, depois as mãos, a seguir as palavras foram ficando pesadas e presas. Arrastava-as para dizer mas já só falava para dentro ou com os olhos. Muitos morrem sãos, pensei. Cai-lhes o raio numa conversa, acidentam-se sem ter tempo de perceber que morrem sem susto, sem dor, num incrível espanto antes do nada. Comigo, no entanto é assim. Quis mudar-me em pedra, em árvore, em caruma e o processo parece ser este. Perdemo-nos aos poucos na transformação. Queria ser semente, queria ser só uma manhã límpida, um aroma a cruzar as tílias, a derramar-se por onde passeias os silêncios. Antes de ser árvore ainda senti, mínimas as folhas, o balanço dos galhos, o sol a morder a parte sensível das flores. Ficaria bem ali mas algo me impeliu para fora da árvore antes que pudesse perceber o tronco, o carcomido da casca, o ninho com aves sem penas na bifurcação distal do ramo mais alto. Expulsava-me o vento. Senti o voo brusco, o raspar da pele pelas fragas e o tombo forte que esmagaria qualquer um. Estava na terra como que fazendo parte dela. Húmida, tenra, cheia de vida e percebi que todos me aceitavam como parte nutritiva de suas vidas. Levei-me com as formigas, vi o interior de um palácio de corredores e câmaras, de areia que escorregava para fortificar a entrada. Dizem que a defesa do formigueiro anuncia chuva e eu queria ser chuva, pedra, folha, aroma, cor. Queria transformar-me e ficar, decantado, puro, livre, até mudar outra vez. Quando acordei era tarde e vi que voltavas a abrir a porta sem dizer nada.