Com esses olhos

Com esses olhos







Através das pistas sensoriais fornecidas constato não ser uma vibração nova, mas uma lembrança. De um mês para cá encontro um pica-pau em todos os passeios vespertinos, que faço dia ou outro, pelo bairro que floresce a olhos vistos nesta época do ano. Rumino se se trata do mesmo bicho, ou de um parente. Élcio, porteiro do edifício Rosas, troca um dedo de prosa comigo, me alertando que os militares voltarão ao poder. Coço a cabeça, ele insiste em me mostrar um vídeo no celu, declino, alego estar sem tempo, penso alto se vão colocar tanques nas ruas, em quais ruas, se são barulhentos, em matéria de barulho ninguém pode com os ônibus, a cidade já está uma baderna, o novo prefeito só pensa em Brasília e em aumentar o tamanho dos espigões. Imagina isso com tanques. Logo à frente encontro Clodoaldo, luthier aposentado e cinéfilo, conta que assistiu de novo "A Era do Rádio”, do sr. Allen, e que chegou a conclusão tratar-se a obra de uma declaração de amor aos pais dele, bem como tios e tias. Bem pensado. A gente atravessa a vida e chega em uma ou duas conclusões perenes. A primeira é que tudo parece um tanto misterioso. A segunda, e veja, não se trata de regra, apenas ruminação pessoal, o que se destaca mesmo nesse navegar vem impresso com a estampa da afeição pura. Todo o resto atravessa e desvanece. O estampado fica. Dependendo do dia a intensidade com que se verifica tal fenômeno varia somente na direção do tom pastel, com vasto leque de cores. Depois de 3 quarteirões alados de tão arborizados, ah sim, as árvores nos ajudam a flutuar, esbarro com seu Rubens, da banca de jornal, brota o cansativo assunto sobre política, declino, aponto para o meu pulso esquerdo como se ali houvesse um relógio, fiquei com muita vontade de mencionar o Mandela, Nelson, depois de 27 anos de clausura forçada empunhou o verbo perdão, o pôs em prática e no dia da posse discursou para quem quisesse ouvir, rotulando seu próprio país de escória do mundo. Ele disse assim: que não mais sejamos a escória do mundo. Precisa ter peito para se pronunciar dessa forma. Óbvio que só se lida com um problema ao admiti-lo. Eu acho que foi o Brecht quem falou: que tempos são esses em que precisamos mencionar o óbvio? Me recuso neste dia a compartilhar crenças e ou emitir opiniões, outro galo judicativo no terreiro apinhado de galináceos pontificando críticas, acusações, soluções, lamentos. Traquitanas do ego, isso sim. Hoje não. Guiança se traduz por comunhão, nem que seja um breve momento de silêncio, até o próximo degrau. Quem sabe, com a prática, isso se instale. Dois quarteirões para trás as calçadas estavam pontilhadas de pequenas flores amarelas o que, com os feixes de sol mesclado ao ar umedecido pela chuva de agorinha produzia um efeito visual agradável de se ver. Meus sensores pulularam, a consciência gira 360 graus, importa muito onde estou, porém não se trata daquilo uma vez chamado de a terra feliz dos absolutos. Parece apenas uma recordação, algo retorna e então existo, pois nessas caminhadas por entre árvores é quando ressuscito a mim mesmo.


(Imagem:  Joel Sternfeld)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 03/10/2017
Reeditado em 04/06/2020
Código do texto: T6131532
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