ANDANTE, ANDANTE...



Diário de minhas andanças
05/02/2012



Saí por aí . A exemplo do que faço todos os domingos, sempre pelo mesmo rumo.
Fim de tarde e como a natureza é pródiga coloca ao meu dispor as duas faces da moeda. À minha direita,a visão da serra da Esperança , tão distante, feito base à núvens carregadas.
Vez e outra um relâmpago rasga o céu e o som abafado de um trovão insinua tempestade sobre a longínqua colonia ucraniana . Lá pelas bandas de Itapará que “Orreda” , o nosso  mestre, assim poetisa quando à ela se refere:

“Abelhas descobrem mel no azul da tarde.Grilo no silêncio imita cigarra.
Broa dourada no altar do universo
Pão de ouro na magia do centeio
O encanto da torre de prata
No alto do paraíso”...

À minha esquerda, um céu límpido e com matizes moribundos do dia ,é pano de fundo para araucárias feito taças enegrecidas.
Absorta , a lua cheia mostra-se devidamente maquiada.
Quando o teatro da noite fizer descer a cortina ela será tôda luar [Ainda que muito distante chuvas derramem-se sobre as colinas de espigas]
Andante,andante...
Sinto-me indeciso:
A continuar em linha reta chega-se ao Riozinho.A imponência do prédio da Unicentro (que não perderá jamais aquêle ar do meu inesquecível Seminário) ainda que um tanto longe, já se manifesta por trás do arvoredo.

À minha  direita , Engenheiro Gutierrez com todo o bucolismo de seus moinhos de cereais quase centenários, suas ruelas , igrejas e o vestígio de uma antiga estação ferroviária.

Escolho a segunda opção .
A rua Guatemala abre-se em tapete à minha frente e , vou descendo a ladeira.
O silêncio é sua marca registrada. Casas antigas, flores amarelas pelos desvãos de cercas, comadres selando amizades à chimarrão pelas varandas...
Estábulos e cinamomos confundindo cheiros, vacas mugindo pelas cercanias...

Tangem os sinos na igreja de Cristo Rei.
Meninos batem “bete ombro” quase ao fim da ladeira.O pai os acompanha.
Traz na face suada o indisfarçável orgulho do convívio com a prole.Por um instante experimento a sensação de piá na velha rua do Fomento.
Aquêle refrão quase berrado:

"Bete ombro!...Casa no chão,bete em sua mão! "
Há quanto tempo...Ah! Isso já não te pertence mais...(resmungam  meus botões)
Andante,andante... Prossigo.
Cavalos, reflexivos, espreitam-me por trás da cerca aramada.

A senhora solitária do número 54 espia riscos luminosos num céu distante.À minha frente , as duas dezenas de degraus que davam para a estação ferroviária , encobertos agora pela grama expessa , conduzem à quem se dispuser , do nada à lugar nenhum.

Sento-me no topo da escada . Faz calor e um gole de água gelada refresca-me os devaneios. Vejo-me escorregando pelo corrimão. Cadê o corrimão ?  Cadê o menino de calças curtas descendo feito foguete quase matando a mãe de susto ?
Nada de grave, além de uns arranhões e , vez e outra , um carimbo vigoroso de barro nos fundilhos.
Ponho-me a recriar cenários:
Idas e vindas , gente alegre subindo e descendo os mais de vinte degraus .O bar de dona Tecla , as gazozas vermelhas geladíssimas , acompanhadas de bolachas de mel.
[Aquelas em formato de coração]
Tudo em dourado singelismo. Agora , na ciranda do tempo,tão sòmente imagens ilusórias subindo...Descendo...
Semblantes entristecidos , vestindo sépia.
Bar e sorriso da proprietária , esquivando-se também em sépia.
Pobres fantasmas ! Perdidos , andantes ,andantes...
no entorno de uma estação que não mais existe.
Subitamente a sonoridade de um  apito vai estraçalhando quietudes na tarde .
Vibrante ! Rasgando dormências do vale.Evoca Raul Seixas em seu trem das sete:

" Óh!...Olha o trem ,vem surgindo atrás das montanhas azuis , olha o trem"
Nada de montanhas . Tão somente  a curva das arueiras o fazendo imergir sob o viaduto.

Ponho-me em  compasso de espera pela passagem triunfal.
Água gelada desce-me com sabor de gazoza do bar de outrora e meus olhos vão , pouco a pouco , modificando a  frieza de  vagões tresloucados cruzando à minha frente.
Obedientes ao meu comando , truculentos vagões de combustíveis vão ganhando contornos de pequenas janelas. Acenos e flertes , maçãs argentinas...
De terno branco um senhor abana-me o chapéu Panamá.
A moça de vermelho sorri numa janelinha e crianças debruçadas nas soleiras, divisam os trilhos diante de outra.
O  trem  pára.A  plataforma está repleta. 
Alguém apanha a maleta, Prepara-se para o desembarque. Fantasmagoricamente , evanesce por entre os trilhos.
Então saio do  transe e percebo que da plataforma só resta
a caliça .Cruza à minha frente o último vagão.O logotipo de uma multinacional estampa-se em vermelho e verde sobre os dormentes.
Silêncio no vale...
As paralelas da linha férrea, dividem território pondo-me de frente ao senhor enigmático (O mesmo de quem falei em minha crônica "Enigmáticos").

À distância seu vulto introspectivo, observa o comboio sumindo entre a vegetação.
De onde me encontro , capto aquêle seu olhar perdido na tarde vazada de restos de sol.
Igualamo-nos,certamente. Penso comigo.
Somos, nêste instante , reduzidos tão somente à duas carcaças.
Alma e coração , juntos , abrem caminho pelas paralelas até uma proxima estação.
Somos, dois enigmas , andantes no trem do tempo.

Para  dar  uma "sonorização" aos  rabiscos, clic no link  abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=9BERQm0rba0
Texto  reeditado.
Preservados os comentários ao  texto  anterior:




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05/09/2016 23:29 - Giustina
Esta maravilha de crônica é atemporal! Sempre um prazer ler e degustar estas fotos magníficas que teu olhar alcança. Abraços.


04/03/2012 18:39 - jorê
Caro Joel! continue andando assim... E a nos trazer lembranças, doces lembranças, de suas andanças... Gostei muito! abçs. jorê


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09/02/2012 15:40 - Teca
Enigmas andantes somos todos até que um dia continuemos um enigma, um corisco que riscou o céu, mas já passou... Amei a leitura, as fotos, a crônica, tudinho! aplausos e um "xero".


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08/02/2012 08:35 - Carlinhos Colé
Amigo joel, que bom que nessas suas andançasandanças você leva o seu tubisco! Nem precisava , porque do jeito que você pinta as coisas... mas já que tem esse recurso, né? Fica bão toda vida, sô!


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06/02/2012 23:27 - Lisyt
Belíssima crônica Joel! Esse seu saudosismo é contagiante. Suas imagens são admiráveis e sua sensibilidade transforma sua narração em pinceladas de poesia. Enquanto nós, seus leitores, em sua companhia seguimos maravilhados... Andante, andante / Um forte abraço.


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06/02/2012 08:01 -
Amigo Joel. A tua crônica me transporta por lugares que eu nunca vi, nunca passei e provavelmente nunca verei. Mas senti-me dentro do cenário tão bem descrito por ti, Obrigado pela viagem que me proporcionas-te.Abraços do carioca Ciro


06/02/2012 00:56 - Chico Chicão
Meu caro Joel do meu Paraná querido.Fiquei mudo e parado.Eu me transformei em você,por isso comento com suas palavras:*Tudo em dourado singelismo...tão somente imagens ilusórias. ...Somos dois enigmas andantes,notrem do tempo.* Creio que isto basta para tanta beleza.Andante,andante,ma non troppo.Obrigado,amigo.Fique na paz!


05/02/2012 21:29 - sunny [não autenticado]
Que viagem, Joel! As fotos são maravilhosas. Seu coração deve sonhar quando dá cada passo deste caminho. Ler você é bom demais. Boa semana, amigo querido!


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05/02/2012 21:12 - veralis
Essa é pra ser lida e relida de tão boa que tá e as fotos então? Tudo é arte e poesia. Saudepaz.


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05/02/2012 20:15 - Leandro Del Tedesco
Fotos e texto de beleza ímpar...um domingo com aroma de campo!!!Gostei demais!!!


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05/02/2012 20:12 - Maria Mineira
Joel, visitar a sua página é uma viagem sem igual, através das imagens lindas e dos textos bem escritos. Só posso lhe dar os parabéns. Um abraço aqui da Serra da Canastra.


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05/02/2012 19:58 - Anita D Cambuim
Joel, boa noite. Você saí pra caminhar e se diverte levando não só a máquina fotográfica, mas principalmente a mente fértil que vai recriando o cenário. Gosto muito da sua maneira de fazer crônicas. Boa semana.


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05/02/2012 19:50 - Ione Rubra Rosa
Maravilhosa sua crônica,Joel. As fotos belíssimas.Parabéns pela inspiração.bjs no coração