Pressa inimiga
 
Nós, seres humanos, pelo menos nestes tempos recentes, com tamanho desenvolvimento nas mais diversas áreas, vivemos o ápice dos excessos. Estamos apressados demais, trabalhando demais, ansiosos demais. Para que? Para ganhar dinheiro, para ter mais bens e, com isso, ter uma “vida bem confortável”. Tudo isso ao custo de descuidarmos da nossa saúde. Depois de certo tempo começamos a dispor do que adquirimos para tratar dos males físicos e espirituais adquiridos. Neste ponto, os animais – e mesmo os menores insetos, como por exemplo, as abelhas, são mais inteligentes e evoluídos. Não se tem notícia de que uma colmeia, em milhões de anos, tenha aumentado a sua produção de mel para suprir caprichos da rainha. Que tenha feito manifestações ou se estressado, a não ser por alguma ação do homem. Ou ainda que tenha alterado a sua perfeita arquitetura hexagonal de construção para outro modelo mais em moda. Acho que me fiz entender, não é mesmo?
E já que estamos falando nestes excessos crônicos do ser humano, um dia desses presenciei um episódio inusitado. Após longa estiagem, havia caído uma primeira e fina chuva pela manhã, suficiente para aguçar a atenção dos motoristas mais sensatos. Há um perigo maior quanto às derrapagens, situação frequentemente abordada nas campanhas educativas do trânsito. Enquanto eu caminhava por uma via secundária de bifurcação e, quase próximo à via principal, presenciei um carro vermelho vindo em boa velocidade. Código de trânsito à parte, esperava um gesto de gentileza do motorista, uma vez que ele teria que, obrigatoriamente, parar seu veículo para a entrada na via principal. Ele não foi educado comigo, desrespeitou a placa e entrou repentinamente na via, não percebendo que uma ciclista, na via principal passava bem à sua frente. Ainda que arremessada a uma pequena distância, vi a vítima estirada ao chão, gritando atordoada:
- O senhor não tem olhos na cara? Como não me viu? A parada obrigatória é para o senhor e a preferência é minha!
Uma passageira do veículo, que acreditei ser a filha do condutor, desceu imediatamente do carro e indagou à ciclista se ela havia se machucado. Foi surpreendida com extrema repulsa da vítima:
- Não encosta a mão em mim. Sei me levantar sozinha.
A passageira se socorreu comigo que, então, presenciava, bem perto, toda a cena:
- Está vendo, moço? Estou querendo ajudá-la e ela vem com grosseria!
Disse-lhe discretamente:
- Fique calma, senhora. Ela está em choque, mas logo pensará melhor. De fato, em poucos minutos a ciclista já aceitou o auxílio. Informou que, como doméstica, estava indo para o trabalho num bairro de classe média alta da cidade. Felizmente não havia se machucado e estava, agora, somente um pouco assustada. Por fim, disse, lamentando-se:
- Eu tenho que ir trabalhar e esta bicicleta é o meu meio de transporte, disse ainda ofegante.
Com o impacto, o pedal da bicicleta adentrou para a roda traseira, não permitindo qualquer pedalada. Por sorte, a passageira vislumbrou uma oficina próxima e se dispôs a levá-la imediatamente para o conserto, além de conduzir a doméstica ao seu trabalho. E, do mesmo modo, entregar a bicicleta devidamente reparada à sua dona. Quanto ao veículo, sofreu um arranhão mínimo.
Quase tudo se resolveu em poucos minutos, não fosse uma escancarada frieza do motorista. Como um dos atores principais do episódio, observei que ele se comportou como um mero coadjuvante. Já me retirava do local quando o ouvi dizer:
- Depressa Ângela, temos muito que fazer na loja. Não podemos nos atrasar. Hoje é o dia das promoções especiais e, se Deus quiser teremos boas vendas. A propósito, não deixe eu me esquecer dos meus exames. O médico está insistindo comigo para fazê-los o mais rápido possível. E tem também aquele do oftalmologista que acho que vou desmarcar. Vou deixar para outro dia porque hoje vai ser muito movimentado!
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 02/10/2017
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T6130810
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.