DENUNCIAR POR DENUNCIAR ("Falar mal dos outros agrada tanto às pessoas que é muito difícil deixar de condenar um homem para comprazer os nossos interlocutores". — Leon Tolstói)
Era mais uma manhã na secretaria de educação. O ar estava carregado de tensão e expectativa enquanto pais e alunos chegavam em ondas, cada um com sua própria história para contar, sua própria denúncia a fazer. O espetáculo estava prestes a começar.
— "Meu filho foi injustamente rejeitado na matrícula!" - bradava uma mãe indignada, com o rosto vermelho de raiva. Observei, fascinado, o funcionário acatando o pedido sem questionar. Vivíamos em um mundo onde a razão havia sido substituída pela conveniência, onde a verdade se tornara menos importante que a aparência de justiça.
As palavras de Diógenes ecoavam em minha mente: "Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador". A observação se encaixava perfeitamente ao que testemunhava.
Com o avançar do dia, as denúncias se multiplicavam. Cada pessoa encontrava sua própria causa, sua cruzada particular. Hal Ozsan sussurrava em meus pensamentos: "E eu nunca conheci um louco, que não tem uma causa, e eu nunca conheci um pervertido, que não tem um coração partido".
Era fascinante observar como as pessoas se agarravam a títulos e posições que não lhes pertenciam. Denunciantes se portavam como autoridades, guardas como policiais, tratoristas como motoristas, leiteiro como fazendeiro e caixa de lotérica como bancário. Um verdadeiro carnaval de identidades trocadas, um baile de máscaras onde ninguém era quem alegava ser.
O aspecto mais perturbador era perceber como as verdadeiras vítimas sofriam duplamente: primeiro pelo ato que as vitimizou, depois pela exposição e pelo circo que se formava em torno de seu sofrimento. A dor alheia transformava-se em palco para autopromoção.
Refletindo sobre as artes, o teatro e como a transgressão se tornara a nova norma, recordei Umberto Eco: "Para rebater uma acusação, não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador". Era impressionante como se tornara fácil descartar acusações legítimas com argumentos retorcidos!
Ao final do dia, exausto e contemplativo, as palavras de Tito ressoavam: "Tudo é puro para os que são puros; mas nada é puro para os impuros e descrentes, pois a mente e a consciência deles estão sujas". Observei a pilha de denúncias e os rostos ansiosos que aguardavam resoluções rápidas e fáceis.
Estávamos presos em um ciclo interminável onde denúncias geravam mais denúncias, e acusações multiplicavam acusações. Em meio a esse turbilhão, a verdade e a justiça pareciam cada vez mais distantes.
Deixei a secretaria naquela noite com questionamentos profundos: Em um mundo de denunciantes, quem assume o papel de juiz? Quem ousa ser simplesmente humano, com todas as suas imperfeições e complexidades? Por que persistimos nessa caça frenética sem fim aparente?
Talvez estejamos todos aprisionados neste teatro de aparências e moralismos superficiais, buscando papéis que nos façam sentir menos culpados ou mais importantes. A verdadeira questão que devemos enfrentar, enquanto o espetáculo das denúncias prossegue indefinidamente, é: quem está realmente em paz com sua consciência?
Duas questões discursivas sobre o texto:
1. O texto descreve um cenário de constantes denúncias e acusações. Como a busca por justiça pode se transformar em um espetáculo, onde a verdade se perde em meio a interesses pessoais e disputas de poder?
Esta questão convida os alunos a refletir sobre os mecanismos sociais que podem transformar a busca por justiça em um jogo de poder, e as consequências dessa dinâmica para as relações sociais.
2. O texto questiona a natureza das acusações e a busca por pureza em um mundo marcado pela complexidade humana. Como a sociologia pode contribuir para uma compreensão mais profunda das motivações que levam as pessoas a denunciar e acusar os outros, e quais as implicações sociais dessa prática?
Esta questão estimula os alunos a analisar as diferentes motivações que levam as pessoas a denunciar e acusar os outros, considerando os fatores sociais, psicológicos e culturais que podem influenciar esse comportamento.