Que caminhada!
A mais bela lagoa da cidade trazia uma bucólica tarde de inverno. Extensos calçadões atraíam muitos caminhantes, que eram ainda mais numerosos quando no verão. Gente pra lá, gente pra cá e cada qual com seu estilo, inclusive nas passadas. Havia indivíduos de variadas matizes, de trajes, ora típicos, ora exóticos ou mesmo apelativos. E cada qual tentava, de algum modo, ser notado pelos demais.
Eis que vem andando uma senhora de razoável idade, segurando uma revista. Lia-a avidamente, alternando-a nas mãos e ainda ostentava fones nos ouvidos. Um comportamento bem típico dos jovens hoje. Como muitos, ela estava no seu mundo particular, mas, ouso observar, perigosamente vulnerável nos seus principais sentidos. Seria possível caminhar, escutar música e ler revista, tudo isso ao mesmo tempo e não chocar-se com outras pessoas?
E não é que perto dali, na mesma calçada, já se avistava uma aglomeração? A novidade a atrair tanta gente era um enorme pirarucu, trazido recentemente para aquela lagoa e que raramente era visto. Nas poucas aparições, mostrava seu dorso emerso, nunca totalmente o corpo. Ficava boiando por alguns momentos e rapidamente seguia para o centro da lagoa. Os mais entusiasmados afirmavam que ele era do tamanho de um homem.
E lá estava o animal, parado, bem próximo à margem, observado por aquelas pessoas que, desse modo, obstruíam a passagem dos caminhantes. A senhora da caminhada, da revista e dos fones de ouvido, cada vez mais se aproximava. Veio chegando, chegando e pronto! Uma sucessão de esbarrões se configurou no meio da multidão. Irritada, a mulher se insurgiu contra tudo e contra todos. Olhou para o lago, com o sangue subindo-lhe as faces, mas nada viu. Continuou com o rosto enrubescido, enquanto alguns gesticulavam, tentando despertá-la para a novidade, um enorme animal às margens da lagoa. Não, ela não conseguia ver, não queria ver. Foi dos resmungos aos gritos em poucos segundos. Só lhe importava o desabafo diante daquela gente que, sem razão nenhuma, obstruíra a sua caminhada. Não tomou conhecimento de que havia um belo exemplar da fauna brasileira, vindo diretamente da Amazônia e que estava ali a extasiar tantas pessoas, eu inclusive. Todos queriam apenas observar o raro momento daquele animal. Restou uma senhora de faces fechadas, seguindo seu caminho, agora com passos largos e desconexos.
Assim foi-se a mulher, deixando, sem qualquer cerimônia, a revista aberta pelo chão. Troquei momentaneamente minha curiosidade e deixei o bicho. Quis descobrir que assunto tão interessante a absorvia naquelas páginas. E pasmem: eram as últimas novidades em cremes faciais, com orientações precisas sobre como manter a jovialidade do rosto.
E aí pensei comigo: será que estes cremes dariam conta de um rosto que se transformou completamente por conta de tamanho estresse e mau humor? Acredito que não. Até onde li, as promessas da revista previam tratamentos apenas externos.
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 29/09/2017
Reeditado em 19/10/2017
Código do texto: T6128390
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.