Como de costume, uma grande agitação tomava conta da cidade naquela sexta-feira à tarde. Intenso tráfego de veículos, pessoas apressadas e tantos outros sinais em uma cidade que vinha crescendo, desordenadamente crescendo... Nas conversas pelas esquinas do centro, os temas recorrentes eram a política, o trânsito, a segurança, e as drogas, muitas drogas. E eis que alguém comenta sobre o comportamento dos motoboys que, sem saber (ou sabendo), transportam, além de passageiros e entregas comuns, malotes suspeitos para clientes ainda mais suspeitos. Indo direto ao ponto, alguns, observou um cidadão, são verdadeiros “agentes do tráfico”.
Num certo momento, na orla da lagoa principal da cidade, a polícia realizava uma blitz, possivelmente em razão de denúncia anônima. Os militares estavam abordando, dentre vários motociclistas, um destes suspeitos pilotos. Assustado, ele tentara acelerar sua moto, mas literalmente “caiu em si”. Viu que era inútil escapar e passou a simular que não havia o que temer. Finalmente para. Em pouco tempo, populares passando pelo local, se aproximam da cena. O chefe da patrulha, já de posse de um malote, determina que o motoqueiro seja algemado e permaneça de pé, em frente à viatura policial. De dentro do malote, para excitação e deleite de alguns curiosos, o militar retira o que chamam de “buchas de maconha” e “papelotes de cocaína”, prontos para serem consumidos. Foi um belo flagrante. E seguem-se procedimentos. A documentação da motocicleta é conferida e o veículo minuciosamente vistoriado. O cidadão permanece algemado e pálido com toda aquela situação. Cabisbaixo, tenta ignorar aquelas pessoas que, do outro lado da rua, sedentos pela desgraça alheia, cruelmente procuram pelo seu rosto. Nunca vi tanto constrangimento, até decepcionar-me comigo mesmo: afinal, eu também estava ali, parado, apreciando tudo, como todos. Tive um átimo de sensatez e decidi desligar-me daquele triste momento.
Virei-me imediatamente e foi aí que vi, do outro lado da rua, uma nova cena. Há muito se passara da hora do almoço, mas uma senhora, na porta de casa, servia calmamente três pratos de comida para uma mulher e duas crianças. Sentados na beira da calçada, o interesse daqueles coitados era somente por aquela tardia refeição – aproximava-se das 14h – que acabavam de receber e, vorazmente, se preparavam para consumir. Não tinham a menor curiosidade pelo que acontecia à frente deles. Também a senhora não conseguiu se fixar no ocaso do motoqueiro. Preferia admirar o olhar brilhante e feliz daqueles pedintes, na doce sensação de que estava lhes “matando a fome”, talvez de dias. Observei um pouco mais as duas cenas. Nenhuma daquelas pessoas conseguiu perceber o gesto do outro lado da rua. Continuavam a procurar pelo rosto do motoqueiro.
Cheguei em casa, num dia que pareceu difícil, mas interessante. À noite, no jantar, lembrei-me dos pedintes. Decidi que deveria me esforçar para fazer melhores escolhas. E pensei comigo: - O que pode ser mais importante do que um singelo gesto de caridade?
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 29/09/2017
Reeditado em 13/11/2017
Código do texto: T6128206
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