Ô, mamãe, cuida deu

O evento é uma profusão de cores, sons, coreografias. Cantos às vezes festivos acompanhados de um batuque frenético. Outras vezes pungente, carregado de angústia, da esmagadora consciência da pequenez da alma humana, da sede do espírito de alcançar as alturas celestiais ou a clamar por um consolo que parece tardar.

“Ô, mamãe, cuida deu! Ô, mamãe, ampara eu”.

Os sons das caixas, dos reco-recos, das cuícas, dos adufos, das folhas e das gungas de muitos guizos afiveladas às canelas. São ecos da mãe África que insurgem da herança cultural dos ancestrais. Do sangue que lateja indômito indiferente às agruras impostas pelas barreiras sociais e econômicas.

Caminhando no meio daquele bloco maciço de gente repleta de brasilidade, que se acotovelava em busca de um melhor ângulo para assistir ao cortejo, fui tomado de uma comoção que certamente não serei capaz de descrever. Um repentino orgulho de ser parte desse povo que infelizmente, ainda desconhece o poder da sua força, mas que certamente prepara um futuro melhor. Vejo isso nestas manifestações que reúnem homens e mulheres de todas as idades, misturados na mesma atitude de se agregar, de juntar os esforços e colher juntos as mesmas emoções.

No “pá-ticum-tum” do batuque, a senhora octogenária conduz o estandarte rebrilhante de lantejoulas enquanto o capitão mirim de nove anos comanda com seu tamborim a guarda de homens robustos a espalmarem no alto da cabeça seus pandeiros enfeitados de fitas coloridas e as mulheres mais lindas do mundo, orgulhosas de sua negritude, o sorriso branco escancarado, o penteado afro lhes coroando as dignas cabeças de guerreiras indebeláveis.

“Ô mamãe cuida deu! Ô mamãe ampara eu”.

Chorei com um sentimento de responsável propriedade. Este é meu povo. Filho das três raças. Ponto de convergência das mais ricas culturas do mundo. Está aí uma coisa que nenhuma PEC poderá nos roubar: a nossa alegria de viver. Afinal, foi na escuridão da senzala que nasceu nosso batuque que hoje encanta a gregos e baianos.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 26/09/2017
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