Desandanças
Não digo que fosse batata. Mas alguma cousa havia na água, nos ares,
ou na cabeça das pessoas da Velha Serrana que, de repente, em meio ao
que parecia ser uma serena velhice, as fazia desandar, desancando
sandices. Gente de bem, de posição na sociedade, e duma hora pra outra
caía naquela peia tão humilhante, desconcertante, alienante, feito o
inferno de Dante. Em gradação, os casos variavam, mas na piração, se
equacionavam.
Padre Guerino, pároco por longas décadas, respeitadíssimo por seus
dotes de pregador, de virtuosidades e de fé inabalável, ao dobrar os
oitenta começou a flertar com o vazio, em puro desvario. Se
ensismesmou.
Menos religioso, e mais profano, o desandar pegou também o velho
Luciano. Pai do Saul, com era melhor conhecido. Esguio, de boa
estampa, família bem criada, enviuvado, pôs-se a perambular pelas ruas
na rota do colégio municipal onde, tamborilando os delgados e
alongados dedos, ia fazendo abordagens às jovens colegiais que andavam
às pencas quiçá para dissuadir um ataque mais direto. e quase
invariavelmente as abordagens começavam por um desculpe-me, mas a
senhora não é de Pará de Minas e enquanto as respostas se engasgavam e
passos se apressavam, os tamborilantes dedos de ancas se aproximavam.
Uns de outrora irreprensível comportamento, perfilhavam agora um
incontrolável transbordamento. Pareciam querer recuperar num ato todo
o temps perdu que se fora para sempre.
Menos rueira e muito mais doméstica, Ticintina, na flor octogenária
manteve o hábito de colar seus olhos na tv. E não eram as novelas que
agora a empolgavam. Não, a personagem de seus sonhos passara a ser
aquele "moço de bigodes" que sempre achava uma hora na telinha para
vir namorar com ela. Naquele namoro de rito e de fito, falava bonito,
e não lhe tirava os olhos. Embora José, não era um quarqué, no seu
porte das águas do norte feito um Vice-Rei, bem sei, era o Sarney.
Ou também a desandar já comecei?
Paulo Miranda