Uma Crônica para Odisseu
Foi ideia do Odisseu. O leitor apressado há de pretender que se trate de mais um capítulo do imenso elenco de paráfrases em torno da epopeia homérica. Sossega, leitor, Odisseu é meu amigo. Sim, meu amigo Ulisses (assim mesmo, em bom português, com “i” ao invés de “y”), a quem eu, às vezes, chamo carinhosamente de Odisseu. O meu amigo é naturalmente menos dado às aventuras marítimas e às artes do amor do que seu ilustre homônimo itacense e, talvez por isso, mais inclinado a dar conselhos literários aos amigos. Mas isso não vem ao caso. O que eu queria mesmo dizer é que a ideia foi dele; do meu amigo Odisseu.
“Por que não escreve uma crônica? ”, perguntou-me um dia no bar enquanto dava um último trago no seu cigarro barato. “Crônica? ”, perguntei surpreso. “Sim, uma crônica”, teimou ele. “Meu caro Ulisses, divino Odisseu, desde quando eu escrevo crônicas? ”. “Ora, você escreve; e quem escreve é capaz de escrever uma crônica”, sentenciou o meu amigo solerte. Pedi mais um conhaque a fim de digerir melhor aquela sugestão e, meio confuso, perguntei-lhe: “mas sobre o que eu escreveria?”. Ulisses franziu o sobrolho, procurou por alguns segundos a ideia em sua cabeça grande — e povoada de mistérios — e, enfim, rompeu o silêncio: “sobre qualquer coisa”, disse. Diante de tamanha sapiência, perguntei estarrecido: “como assim sobre qualquer coisa, meu caro?”. Ulisses continuou: “veja bem, lembre-se do Machado, do Bilac, do Nelson Rodrigues de cujas ‘confissões’ você tanto gosta. Sobre o que eles escreviam suas crônicas? Sobre qualquer coisa: uma notícia de jornal aqui, um assassinato hipotético ali, o ridículo cotidiano da política acolá; um canalha qualquer; uma bela mulher, enfim: qualquer coisa”.
Ulisses falou e falou. Argumentou, redarguiu, tentou captar a minha benevolência e eu, antes que ele começasse a implorar, decidi dar-lhe razão. Quando saímos daquele bar, voltei para casa decidido. “Hei de escrever uma crônica”, dizia comigo mesmo no caminho. Não cruzei com uma bela mulher; há séculos não lia uma notícia sobre nossa terrível política; desprezava os jornais, tinha sempre em mente a frase de Proust: “O que censuro nos jornais é o fato de nos obrigar a prestar atenção, todos os dias, em coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais”. Não queria saber de coisas insignificantes: eu procurava as coisas essenciais, ou ao menos julgava fazê-lo. E se estivesse enganado? E se aquela frase proustiana não fosse mais que uma das muitas boutades de Swann que, por exercerem quase sempre um fascínio imediato, em geral são vazias de significado? Em suma, e se fosse possível encontrar aquelas “coisas essenciais” refletidas e talvez mais autênticas, ainda que com alguma deformação, no prosaico mundo nosso de cada dia?
Não sei se me entendem. Talvez, e escrevo talvez porque não estou certo mesmo, talvez as pérolas estejam na lama. Talvez tenham sido jogadas aos porcos e cabe a estes colhê-las. O escritor brasileiro é o cronista por excelência: temos a fina flor dos cronistas. Bandeira, Paulo Mendes Campos, Drummond, Stanislaw Ponte Preta, praticamente não há grande escritor em nosso país que não tenha mostrado seu talento neste “gênero menor”: o maior dos gêneros menores.
Perdia-me em tais meditações quando cheguei à porta de casa. Entrei, tirei o casaco, fiz um café bem forte, acendi um cigarro e sentei-me à mesa de trabalho. Papel, caneta, cinzeiro: ecce homo!, ei-lo, o cronista em seu habitat. Respiro fundo, pouso o queixo sobre a mão esquerda e escrevo: “Ó pachorra! Tu és a Circe mais feiticeira que conheço contra quem não valem todas as advertências de duas Minervas juntas! ”. Seria um bom começo, se fosse meu, mas é Machado… arrisco outra vez: “quem me dera outra vez aquela fé, aquele delírio”. Não, leitor, não encontrei o estilo certo, é Bilac. “Eu sou um ex-covarde”, Nelson Rodrigues, não eu. E assim, noite adentro, fluíam da caneta para o papel toda uma plêiade de grandes autores que há muito tempo descansavam em minha velha memória. E era logo a minha própria voz que eu não era capaz de discernir em meio àquele turbilhão. Estava diluída, parasitava cada um daqueles grandes nomes que me deram tanto ao longo da vida.
Como o leitor atento deve ter percebido, não houve crônica naquela noite. Quando o galo cantou, fui para a cama derrotado, levando a alma em cacos para um sono conturbado. Na tarde seguinte a ideia veio, viu-me, venceu-me e concretizou-se no papel. Ei-la aqui, leitor incrédulo, diante de teus olhos: a minha crônica. A crônica sobre a minha incapacidade como cronista. Um singelo regalo para o amigo que ma encomendou. Toma, Ulisses, tens tua crônica. Crônica, amiga crônica, eis teu Ulisses. Após tamanho tour de force, deito a pena (figura de estilo, leitor!) digital sobre o papel sem celulose composto de pixels brancos e negros e despeço-me aqui — não com um piparote, mas com um sussurro que diz “até breve” — desse gênero efêmero. Acabou, leitor. “La Commedia è finita!”. Feche o livro, saia para tomar um ar, deve ser um dia lindo. Eu pingo aqui o ponto final. O resto, como alguém já disse, é silêncio.