O GAROTINHO BRAGANÇANO
Não sei se já vos falei de amoroso menino, que conheci, nos anos sessenta, na velha cidade de Bragança.
Tinha a cabeça coberta de farto e fino cabelo; cabelo macio, escorrido, de nuances em ouro velho, que lhe descia até aos ombros. Rosto oval. Pele branca, cetinosa, ligeiramente tostadinha. Olhos vivos e meigos. Lábios bem desenhados. Pescoço alto e esbelto; e cândida expressão, que cativava.
Foi meu companheiro. Companheiro dedicado, com quem passei largos e longas horas de ameno convívio fraternal.
Certa ocasião, após ter vindo, definitivamente, para a cidade do Porto, hospedei-me em modesta pensão bragantina, cuja fachada era fronteira à velha estação ferroviária.
Após o almoço, inesperadamente, surgiu-me, num lanço das escadas, que comunicavam com os quartos, sorrindo. Sorriso lindo, que jamais pude esquecer.
Admirei-me da insólita presença, e indaguei, curioso, a razão de me esperar:
- “ Olá! Então por aqui?! …”
Num trejeito juvenil, disse-me, encolhido, titubeando:
- “ Minha mãe pediu-me para o vir buscar, e ajudá-lo a levar a mala… – Explicou, de mãos enlaçadas, balanceando o corpo.
Agradeci, penhorado, a gentileza, e cortesmente, esclareci que não pretendia incomodar.
- “ O primo Humberto nunca incómoda! …Assim ficamos todos juntos…”
Fiquei sem palavras. Emocionado. Sabia que falava com sinceridade. Os olhos não enganavam…
Não o deixei trazer a mala, como queria. Mala antiga, de cartão endurecido, de cor acastanhada. Insistiu. Recusei. Vencido, acompanhou-me em silêncio.
Ao cruzarmos a Praça da Sé, junto ao Café Central, voltou-se para mim, e, timidamente, declarou:
- “ Minhas irmãs estão ansiosas de o ver…”
Este rapazinho, de bondade e sensibilidade extrema, foi o meu companheiro predileto; amigo sincero e leal, nos anos, que, por obrigação, permaneci na sua velha e encantadora cidade.
Decorrido um bom par de anos, após a derradeira visita, que fiz, encontrei-o, já adolescente, na bonita aldeia de seu pai.
Avizinhou-se, numa tarde abafada de Agosto, com a mesma simplicidade de sempre, e convidou-me para acompanhá-lo a bonito prado, onde pesada vaca, malhada, branca e preta, pastava pachorrentamente, com chocalho barulhento.
Deitamo-nos na relva fofa, mirando o céu azul – onde vagavam pequenas e esfarrapadas nuvens brancas, – sob frondosa e farfalhuda figueira. Uma andorinha, num voo baixo e elegante, rasgou o ar, pairando sobre a relva.
Raios doirados do Sol, crivados pela espessa e fresca ramagem, manchavam-nos o rosto de sombras escuras e claras. Enorme e acolhedora paz, envolvia-nos. Calor de rachar! …Cantavam, não sei onde, à compita, cigarras e grilos – gri, gri.gri…; crass,crass…zzz…- quebrando o murmúrio do silencio.
Os cavalos – que nos transportaram – libertos do selim, espojavam-se, retoiçando e relinchando, alegremente, na relva verde-escura. Ao longe, ladravam cães, e chegavam vozes imperceptíveis, de mulheres e crianças.
Conversamos sobre a canícula, que tudo secava; da beleza de viver à beira-mar; e da tumultuosa vida citadina.
Disse-lhe, então, que dentro de dias tinha que regressar.
- “ E não vai a Bragança?! – Indagou, com pontinha de censura.
- “ Não. Parto diretamente para o Porto.”
_ “ Fique mais uns dias! …A mãe, e minhas irmãs, também gostam muito do primo…”
Não fiquei. Não podia. Na hora da despedida, abraçou-me, beijou-me, e não sei se chegou a chorar.
Fiquei com a sensação – talvez errada, – que me queria dizer, muito baixinho: “ leve-me consigo…”
Soube, mais tarde, por meu irmão, que havia falecido, de forma trágica.
Fiquei triste. Muito triste…
Triste, por não o ter visitado mais vezes. Triste, porque amizades assim, nunca mais encontrei.
Escrevo, esta crónica, ao cair da tarde. Em breve, para as verdes várzeas do Candal, o céu azul, alaranjar-se-á; e tonalidades quentes de vermelho-sangue e amarelo-ouro-esverdeado, pintarão o azul desmaiado do céu, desta tórrida tarde de Verão.
É o pôr-do-sol. Espetáculo apoteótico de luz e cor. Extasiante; sempre renovado e belo, que encanta, e deixa paz na alma angustiada.
O Sol sempre nasce e sempre morre; morre e nasce todos os dias: iluminando, dando vida e cor à Terra.
Mas…Ai de mim! …, que, vertiginosamente, caminho para as derradeiras cores do meu crepuscular…
Em breve chegará a noite negra; mas enquanto não vier o sono, viverei dos lindos sonhos, que vivi, e dos que não vivi, mas gostaria de os ter vivido…
Recordando companheiros que partiram… mas vivem, eternamente, dentro de mim; e os que ainda não partiram… mas já me sepultaram no esquecimento…
Este garotinho não morreu: repousa no meu coração saudoso: sempre jovem, sempre sorrindo, sempre a dizer muito baixinho à minha alma contristada: “ Gosto muito do primo! …”