O PINGA-PINGA
Terrível sensação. Com defeito, a torneira da cozinha pinga e pinga... Pinga e pinga...
Meia noite. Em passos lentos, dirijo-me aos meus aposentos. Mas o pinga-pinga ficou lá, curtindo da minha paciência.
Apago as luzes. Deito-me. Porém a sonoplastia chega aos meus tímpanos, execrando-me. Percebo que o silêncio nada reclama. E o pinga-pinga lá, trotando a valsa da inquietude.
Cubro-me dos pés à cabeça. Tento tapar os ouvidos com o travesseiro, contudo com a emoção aguçada, o pinga-pinga é sonoro, ultrapassa os limites das confidências e reina
soberanamente. Pobre de mim!
Poderia, se quisesse, usar a expressão “coitado de mim”, porém não vou me entregar assim tão facilmente. Sou “duro na queda”. Ah, como o sou!
O pinga-pinga tem a ousadia de importunar-me. Viro e reviro no leito. Verdadeiro remelexo. E nada! Ele lá a cantar vitória. A essas alturas, meu sono... Que sono? Este foi dar
um passeio, visitar quem esteja bocejando. Minha realidade é controversa. Estou em apuros, a ponto de gritar e gritar...
Ouço agora o tique-taque do relógio. Três horas da manhã. E o sono ingrato tomou outro rumo, abandonando-me. Tragédia!
Minha mente se associou ao pinga-pinga e inicia-se a remoer reminiscências pretéritas. Vejo-me criança a cometer minhas traquinagens. Na mente, uma imensa tela se instala e
expõe imagens como se fossem atuais. Logo estou na adolescência a experimentar meus primeiros amores. Tudo numa fração de segundos. Uma vida inteira repassada num curtíssimo espaço de tempo.
Totalmente suado, levanto-me. Vou até à cozinha. Olho firme para a torneira. Lá está o pinga-pinga desnorteando minha madrugada. Raciocino rápido. Encontro uma toalha de
prato e amarro forte a tal torneira. O pinga-pinga estacou, no entanto só enquanto ensopava a toalha. Lá permanecia a ribombar minha audição: inconveniência!
Retornei à alcova. Como sabia que não iria conseguir dormir, liguei o computador. Percorri vários sítios em redes sociais e, num deles, um convite interessante: “ESCREVA SUA REDAÇÃO E PARTICIPE. AO VENCEDOR SERÁ CONFERIDO O PRÊMIO DE UMA VIAGEM AO EXTERIOR. QUINZE DIAS PARA CONHECER UM LUGAR À SUA ESCOLHA E COM ACOMPANHANTE. UM JÚRI
SELECIONADO FARÁ A CORREÇÃO DOS TRABALHOS. A INSCRIÇÃO É GRATUITA E O PRAZO SE ESGOTA HOJE. BOA SORTE. O TEMA É “O PINGO D’ÁGUA”.
Coincidência? Não sei. Não me contive. Desliguei apressadamente o computador e corri à cozinha. Como num passe de mágica o pinga-pinga havia cessado, por completo. E eu estava perante um convite. Minha cabeça ardia. Ainda sem sono, tomei de uma caneta e de uma folha de papel. Escrevi a redação e a enviei no dia seguinte. Estava inscrito.
Duas semanas mais tarde, à noite, novamente o pinga-pinga. Foi quando me lembrei do concurso. Eu o havia esquecido. Fui até o computador e o liguei. Busquei o sítio promotor. Lá estava o resultado: eu havia conquistado a primeira colocação...
Mais uma vez o pinga-pinga cessou. Definitivamente.
Só não estacou, até hoje, o pinga-pinga que há em meu olhar...
DE Ivan de Oliveira Melo