CHAMADA PARA UM MORTO
A notícia correu rapidamente. Em toda a rua, as mesmas caras estupefatas, quase as mesmas expressões verbais. Do Sr. Ivo, próspero negociante, à pobre lavadeira, D. Iná, todos logo ficaram sabendo e reagiam como num coro orquestrado: “Mas não me diga, sinhá”. “Pois é, assim de repente”. “O médico tinha dito que ele andava fraco”. “Ah, meu Deus!”. “Esse mundo não vale nada!”. “Quando é o enterro?”. “Às quatro da tarde”.
Logo depois do almoço, começou a movimentação. Procura aquela gravata preta, repassa o vestido, o terno, ninguém quer fazer feio. D. Marocas pensou que era hora de estrear os brincos recém comprados. As crianças perguntavam, insistentes, se realmente precisavam ir.
Muita gente compareceu. Às duas horas, já havia meia dúzia de urubus, empertigados de negro, na sala de jantar, convertida em câmara mortuária. Sentada aos pés do caixão, a viúva levantava a cabeça ocasionalmente e agradecia, em meio a soluços, as manifestações de pêsames. Ao seu lado, a irmã vigilante, de olhos e nariz vermelhos, em postura de absoluta solidariedade.
Uns vinham apresentar-se diretamente à viúva, outros ficavam por instantes a olhar o caixão negro, onde jazia o corpo do velho, coberto de flores. Aliás, é tempo de falar do falecido, elemento catalisador de toda a vizinhança, parentes, conhecidos e demais interessados ali presentes. Seu nome completo era Otaviano Marcondes de Faria. Idade, sessenta e oito anos. Profissão, escriturário (florista, nas horas vagas). Nem melhor, nem pior que outras pessoas, apenas um cidadão comum. Sua vidinha consistia em ir ao trabalho, voltar, cuidar das flores, bater papo com a mulher, vizinhos e amigos. Gostava de ouvir rádio nas manhãs de sábado. Fora isso, um chopinho de vez em quando no bar da esquina, ou, com melhor sorte, um final de semana em Arraial do Cabo, onde vivia a mãe. Otaviano também gostava de futebol, torcia pelo magistral Fluminense, embora com moderação, bem de acordo com seu estilo de vida. Conhecia todos na rua em que morava, o que talvez explicasse a multidão que ali compareceu, embora não fosse de descartar a presença de um ou outro curioso, à cata de algo diferente para ver naquele dia fatídico.
O Sr. Ivo foi quase o último a chegar. “D. Dolores, meus sentimentos. Nem tenho palavras para significar o quanto sinto”. A viúva repetia, à exaustão, que o pobre marido já se vinha queixando de falta de ar há algum tempo. Consternadas conclusões de que a vida era assim mesmo também se sucediam em profusão. D. Lucíola, outra das irmãs, oferecia cafezinho aos presentes, alguns dos quais hesitavam em aceitar ou não. D. Iná dirigiu-se logo à cozinha, para oferecer seus préstimos. A conversa prosseguia numa ladainha baixa, porém suficientemente forte para dominar o ambiente, como se todos entoassem uma espécie de reza. Caso fosse um morto mais vivo, Otaviano certamente aguçaria os ouvidos para distinguir o que diziam, já que falavam bastante dele.
“Pois é, conheci o Marcondes faz muito tempo. Trabalhamos juntos na companhia de gás”. “Era meu primo, sim, mas meio esquisitão, sabe?”. “Coitada da D. Dolores, sempre aí firme...”. “Não era indivíduo de muitas posses, aliás, nunca foi. É a tal coisa: nem todos nascem pros negócios”. “A casa em Arraial do Cabo era dele ou da mãe?”. “Que triste! O Fluzão perdeu um torcedor..., falando nisso, tem jogo amanhã. Você vai?”. “Estou precisando de um terno novo, vamos ver se dá prá comprar no mês que vem, assim que sair o ordenado”. “O arranjo de flores foi nosso mesmo. Otaviano gostava tanto de flores!”. “Parecia boa pessoa, mas não privei de sua intimidade, era reservado, sacumé?”. “Olha, esses brincos custaram um dinheirão!”. “D. Dolores vai continuar morando aqui?”. “Cadê o Aparício, que não aparece? Tá quase na hora de ir pro cemitério!”. “A cozinha precisa de uma pintura”. “Veja só! Ela tem um vaso igualzinho ao meu!”. “D. Dolores! Chegou o Aparício”.
Com a chegada do carro fúnebre, a multidão fora da casa comprimiu-se mais. Abriu-se a porta da sala. Desilusão! Era só o jornaleiro que saía para fumar. Passados mais alguns intermináveis minutos, finalmente o astro do espetáculo apareceu, levado por parentes e conhecidos honrados por essa função. O Sr. Ivo explicava a todos que não fazia parte do seleto grupo em virtude de uma hérnia. Iniciou-se a procissão rumo ao cemitério. “Felizmente, é aqui perto. Este terno está insuportável com esse calor!”. “Já era tempo de a prefeitura endireitar essas ruas, caramba! Outro dia, a patroa quase torceu o pé”.
Arrastando-se lentamente, o féretro chegou ao cemitério. Novamente, o grupo de privilegiados retirou o caixão do carro e levou-o até a sepultura, onde o padre Adamastor, que chegou atrasado em razão da cobrança de um casamento, pronunciou as derradeiras palavras que o morto já não ouviria. Baixado o caixão, concluída a cerimônia, dispersou-se a multidão.
Lá ficou Otaviano. Descansou em paz, conforme o epitáfio do túmulo, só vindo a ser perturbado por uma chamada da companhia telefônica, que reclamava de uma conta não paga.
In Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP