QUADRO DE INVERNO EM SALVADOR DA BAHIA

Aqui chove um “pé d’água” todos os dias, a qualquer hora. Mas logo o sol vem e espia como um cachorro louco, lambido de luz e sombras. À noite, estarrecedor é o efeito: o barulho da chuva nos telhados de zinco sugere São Jorge montado no dragão, lutando contra as trevas. O cão uiva: um lobo fora de seu habitat, lambendo o asfalto. E o vento consome o uivo da fome. O corpo magérrimo que nem uma parede mal arrumada. O estômago colado na espinha. Os olhos teimam em fugir das órbitas. Há frios e arrepios por todos os cantos. No interior dos barracos, os viventes acendem velas vermelhas para Ogum. Pisando na comida dos Santos, homens e bichos espiam o céu, ajoelhados. E babam de amor sobre blasfêmias de si e dos outros. Sabem que Oxalá é onisciente, onipotente pra todos os momentos da vida e da morte. E com simplicidade falam com deuses nus, incensados de sal marinho, sois e chuvas... O humano é o mesmo em qualquer ritual.

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2006/12.

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