A Presença Que Falta
Nunca conheci vencedores nesta vida. Derrotados sim, esses tem de montão por aí, vemos eles a cada esquina. E assim era o Sr. Paulo, um derrotado. O conheci quando eu ainda era muito jovem, na época, malmente sabia observar as coisas a minha volta, era a velha situação do mestre e seu pupilo. Sr. Paulo tinha seus 65, cabelos brancos, barba branquinha feito neve, cobria todo o rosto. Barriga de chope, alto, esposa e filho e um marca-passo no peito. Mas nada disso explica quem era o Sr. Paulo nem o que o tornava um derrotado.
Primeiro eu devo começar por mim. Eu era somente um pirralho do ensino fundamental, nada de muito interessante. Como na época era um certo luxo ter internet em casa, eu e um amigo íamos para outro bairro a fim de usar os computadores do centro social da comunidade. Foi no caminho que encontramos uma biblioteca comunitária, coisa pequena, mas relevante pros estudantes da região. Sr. Paulo era o dono. Eu nunca tinha o visto na vida, mas as boas pessoas são assim, aparecem de repente.
Sobre ele só tenho a dizer duas coisas, apenas isso, duas coisas(...) Ele era mesmo um derrotado na vida, não sou eu quem diz, o próprio dizia. Teve de tudo que podia, passou em diversas faculdades, cursou alguns cursos, teve poucos diplomas, conseguiu uma mulher, teve um filho que mais tarde estudara medicina, e envelheceu e depois morreu. Um homem comum, se não fosse por sua motivação, as vezes até insana, em manter sua biblioteca aberta. Por ser comunitária, ele não ganhava nada com aquilo, eram só livros doados e reunidos por anos, mas o aluguel do lugar era caro, além de outros pequenos gastos que, mesmo pequenos, tornavam-se altos para um aposentado.
Quando espertamente conseguiu montar um bazar mensal e dar cursos de informática, eletrônica e inglês, seu primeiro pensamento foi o de abrir outra biblioteca num bairro próximo. Seu desejo era expandir o máximo possível. Eu e meu amigo o ajudava quase todos os dias, limpando, arrumando livros e anotando os nomes de quem levava algo emprestado. Às vezes ficávamos uma tarde inteira sozinhos enquanto ele saía. Lembro como se fosse ontem dele repetindo seu maior conselho: “Estudem, não façam como eu fiz, não deixem as oportunidades passarem”. Sr. Paulo, nos últimos dias em que o vi, chegou a se candidatar a vereador, tinha até vinheta pronta. E novamente, lá vinha ele outra vez com o papo de abrir bibliotecas. Esse era o Sr. Paulo...
Nunca saberei exatamente o que o motivava, para alguns, era só um aposentado tentando fugir do tédio, para outros, um homem que se importava mais com o outro que consigo próprio. Lamento tê-lo conhecido durante minha infância, deixei de aprender muito com ele, nunca lhe fiz as perguntas necessárias, não as que eu necessitava fazer, mas as que ele adoraria responder a um jovem. Embora ele convivesse diariamente com jovens, eu gostaria que ele soubesse que pelo menos um deles ouviria seus conselhos. Mas assim é a vida, um emaranhado de sucessivos enganos, até o dia em que já não há mais tempo para enganos.
Sr. Paulo nunca foi vereador. Nunca abriu uma outra biblioteca. Não viu seu filho virar médico, nem seu pupilo repetir seus erros na vida. Sabe, quando pessoas boas morrem, sentimos isso no ar, como se fosse duas mãos nos asfixiando lentamente. De repente veio a vontade de vê-lo outra vez, como se sentisse que algo estava faltando no mundo, e de certa forma estava. Havia um derrotado a menos. Um derrotado de grande coração e intermináveis sonhos. Mas sonhos nem sempre se realizam. E corações, por mais grandes que sejam, um dia param de bater.
À memória do Sr. Paulo.