Viagens inesquecíveis
Que as viagens inesquecíveis são raras pode ser apenas uma visão muito pessoal. Mas preferirei seguir nessa linha. Só que em vez de falar de uma viagem inesquecível, experiência de que já provei, repassarei os momentos inesquecíveis de várias viagens que fiz.
Não posso me esquecer, por exemplo, que, no trem de Londres para Horsham, passei pela capa de um disco do Pink Floyd -aquela do ''Animals'', em que aparece uma fábrica imensa. Apesar da surpresa, não delirei a ponto de ver os porquinhos sobrevoando as chaminés.
Outro encontro inesperado foi o Cutty Sarks, o pequeno e veloz barco da garrafa de uísque, ancorado no porto seco do Greenwich Park, onde também brinquei de pular por cima do meridiano.
Londres proporcionou ainda o encontro com o ícone pessoal máximo, desdobrado em sua multifacetada simbologia: o primeiro divã, de primo entre exegetas, generosamente exposto no número 20 da tranqüila Maiersfield Gardens Street. Ali, Sigmund Freud, passou o último ano de sua vida entre as estatuetas que tanto amava.
Difícil esquecer da sequência de pontes sobre o Sena, da neve rala que nos recebeu em Cambridge e de como o Palatino romano desenterrou de mim as páginas do Velho Testamento que minha mãe guardava em seu baú.
Naquela tarde, soprou a brisa mais acariciante que talvez já tenha me tocado.
Quando deixei Buenos Aires, às cinco da manhã, fantasiei que era um King Kong chorando sobre as formas maduras e perfumadas da capital argentina. Apaixonei-me pela cidade, mas parti antes de poder realmente conhecê-la.
Em apuros, fiz um xixi às margens da estrada que vai de Santiago do Chile a Valparaíso, olhando a Cordilheira dos Andes e suas lições misteriosas: “Sim, existem milhões de coisas mais fortes que você''. Do alto do Cerro de Santa Luzia, ouví os ruídos da capital chilena presos entre as montanhas. Mais estranho foi ver, do terraço do hotel, a vadiagem dos namorados e dos cães, na Praça de la Moneda, onde antes houvera o ritual de presidentes e soldadinhos de chumbo.
Borges, no esplendor de sua cegueira, percebeu que toda a viagem é espacial, mesmo que seja até a padaria. Não sei quantas viagens ainda farei e não posso prever se serão inesquecíveis. O mais importante é que sejam prazerosas, para que eu possa me nutrir dessas lembranças na aridez cotidiana:
Uma lua cheia sobre o Atlântico e outra, mais cheia ainda, sobre Roma;
O Reservoir do Central Park ao crepúsculo;
As pinceladas de Van Gogh no Museu D’Orsay;
A silhueta dos prédios de Nova York;
Os comentários maldosos do sax de James Carter no Village Vanguard;
Os diálogos de Spike Lee na confusão do metrô;
A trapaça de um malandro florentino que me mostrou uma Roma insuspeitada e depois me levou US$ 10;
O motorista de táxi argentino que lia Cortázar;
A velhinha inglesa que me colocou no ônibus para Black Hill;
E esses sons que ainda reverberam:
“Mind the gap”; “mui amable''; “absolutely''; “Se tienem plata, compran”; “Don't trust anyone”; “El reloj, señor?; “Parlemo italiano”; “The Word is thank you”; Si Vous plait, monsieur Oliverrá”; “Fly home next week”.