A traça do livro

Um rato na queijaria. É exatamente assim que me sinto. Olho a multidão que circula pelas ruas demarcadas com tapetes entre os stands repletos de conhecimento, alegrias, emoções. Fico pensado em quantas outras pessoas entre estas muitas centenas sentem-se como eu. A traça do livro, o devorador. Talvez nem todos. Sei que muitos estão aqui movidos apenas pela curiosidade, alguns talvez até com a nobre missão de ensinar cumprindo apenas uma obrigação do emprego, mas certamente muitos, muitos mesmo, estão vivendo um momento de extase.

Um raro prazer é tomar nas mãos o lançamento de um velho autor conhecido, tirar com sofreguidão o invólucro plástico rasgando-o mesmo com a chave e embucha-lo na mão sem tempo para procurar a lata do lixo, aspirar com desejo o cheiro de coisa nova, levar mesmo ao nariz, automaticamente, inconscientemente, sem constrangimento, sem querer saber se tem alguém olhando. Conferir as orelhas, a ficha técnica, buscar por uma epígrafe, ler a sinopse, admirar a arte da capa.

O leitor, tipo traça do livro, acomoda na bolsa a aquisição e volta a circular por entre os expositores. Confere títulos, autores, formatos, encadernações, lombadas simples ou sofisticadas, cortes singelos ou valorizados por um colorido modesto ou às vezes de um dourado brilhante feito ouro. O traça caminha pela Bienal encantado com tudo o que vê, mas apalpa a bolsa tateando o volume adquirido, antegozando o momento de sentar-se num lugar tranquilo e mergulhar na leitura. Um traça do livro fica fascinado diante deste mundo fantástico que tem a propriedade de arrancá-lo por momentos, ainda que fugazes, da realidade cruel desta existência, enquanto neste mundo a que os crentes chamam de Vale de Lágrimas. O traça do livro pode ser uma criança, um jovem um velho. Pode ser um doutor ou um pintor de paredes, uma professora universitária ou uma empregada doméstica, um chefe de estado ou o homem que recolhe o lixo. O traça terá sempre a mesma dignidade diante deste amigo sábio, constante e discreto chamado livro. Os espíritos de todos crescerão com o mesmo viço, independentemente de sua idade ou classe social. O traça tem o direito de fazer distinção de livros, de escolher seus autores. O livro, porém não faz acepção. É um amigo sempre fiel, presente, generoso.

Por isso o leitor tipo traça de livro, tanto mais será feliz quanto mais intimidade tiver com o seu livro escolhido. Digo isso com base numa experiência pessoal. Com um acervo de mais de três mil volumes à minha disposição, por algum tempo tive uma espécie de congestão cultural. Sentia um certo fastio. Tornei-me um “leitor promíscuo”, ou seja, não me atinha à leitura de um só, comecei a ter muitos livros com a leitura iniciada sem conseguir chegar ao final de nenhum. Quando percebi o que estava acontecendo ainda houve tempo de voltar ao eixo. Hoje quando termino a leitura de um, geralmente tenho outros já na fila, apanho o de meu maior interesse, defino o prazo em que pretendo terminar a leitura, divido o número de páginas pelo número de dias e obtenho a quantidade de páginas que terei que ler por dia para cumprir o prazo proposto, e me imponho a desicumbência diária.

De vez em quando ainda dou uma escorregadinha, mas tenho sido mais fiel. É isso aí!

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 11/09/2017
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