TIBÉRIO

Cheguei em casa por volta do meio-dia e meia. Atirei sobre o sofá da sala a minha pasta com o material escolar e comecei a subir a escada em direção ao meu quarto. Mal havia subido uns cinco degraus e ouvi, vinda da cozinha, a voz de minha mãe:

– Ricardo, é você meu filho?

E quem mais poderia ser àquela hora? Meu pai estava no trabalho e só retornaria para casa depois das seis da tarde, minha irmã Izildinha estava na casa de minha tia Ana.

– Troque logo de roupa que já vou servir o almoço – continuou ela como se eu estivesse em sua presença.

– Um minuto só, mamãe – respondi maquinalmente.

Entrei no quarto e me dirigi de imediato à janela que dava para a rua.

Lá fora uma quantidade considerável de pessoas caminhava pela calçada. Aquele era o horário em que muitas delas deixavam os locais de trabalho e iam para casa almoçar. Debrucei-me no parapeito da janela e estiquei o pescoço na tentativa de avistar quem eu esperava encontrar.

Não tive dificuldade em identificar Tibério, meu colega de classe que há poucos minutos andava ao meu lado, vindo da escola.

Ia o desafortunado rua afora cambaleando como sempre fazia ao caminhar.

Movido por uma mistura de compaixão e curiosidade, fixei nele os meus olhos e o acompanhei enquanto descia a rua.

Aquilo era inacreditável. Mesmo com tamanha dificuldade para se locomover, nunca se soube que ele levasse um tombo ou que se batesse em alguém enquanto caminhava.

– Este menino, com certeza, teve paralisia infantil, meu filho – informou minha mãe logo que o viu pela primeira vez.

Naquela época aquele tipo de enfermidade era uma espécie de tragédia muito comum. A vacina que livraria o mundo daquele terrível mal só viria quase 10 anos depois. Até lá a poliomielite continuava fazendo vítimas de forma indiscriminada.

E Tibério era uma das pessoas que sofria as suas consequências.

Da porta do quarto veio outro chamado de minha mãe.

– Só um minuto, mamãe – respondi de pronto.

– O que está vendo aí? – procurou saber ela, vendo que eu me encontrava atento à rua.

– Nada importante não – desconversei, enquanto ouvia seus passos descendo a escada.

Voltei a observar a rua.

Lá embaixo, já quase virando a esquina da rua onde ele morava, ia o menino tentando se equilibrar sobre a perna sadia. A perna esquerda era perfeita, entretanto, a direita mal ia até o chão. Era torta.

Na minha cabeça de menino, acreditava que se houvesse uma maneira de desentortá-la, o problema estaria resolvido.

Em menos de um minuto Tibério desapareceu, virando a esquina.

Sumiu da minha vista o menino, mas não da minha cabeça.

Até hoje, depois de tantos anos, a sua imagem continua como uma fotografia gravada de forma indelével em minha mente.

Ainda o vejo entrar na sala de aula e se dirigir à sua carteira, a qual estava sempre disposta ao lado da porta de entrada.

– Não sente aí! – gritou certa vez um de nossos colegas a um aluno novato. – Esta carteira tem dono!

Em nossa inocência de gente miúda, acreditávamos que se alguém se sentasse ali, seria contaminado pela sua “doença”.

Aquele era o primeiro ano de Tibério em nossa escola. Ele viera para Ribeirão quando as aulas daquele ano já haviam começado.

Segundo ficamos sabendo, sua família era de Botucatu e seu pai viera trabalhar na empresa Matarazzo, fábrica que beneficiava algodão.

Além disso, pouco sabíamos a seu respeito.

Nada perguntávamos e ele não se propunha a dizer.

Sua enfermidade, apesar de estar numa das pernas e em um dos braços, era o bastante para tolher-lhe a fala. Somente abria a boca quando dona Lurdinha, a professora, lhe dirigia a palavra questionando-lhe alguma coisa.

E ela fazia aquilo até com certa frequência, pois sempre obtinha dele respostas que nenhum de nós conseguia dar. Fora isso, não abria a boca a não ser para responder “presente” no momento da chamada.

Tibério estava sempre sozinho.

Como ser amigo de uma pessoa como aquela?

Ele não podia jogar bola, não podia brincar de coisas como pique-esconde, não conversava. Para nós ele era um inútil.

E além disso, ser amigo dele, poderia significar não ser amigo de ninguém.

Na hora do recreio, todos os dias, lá estava ele na biblioteca da escola.

Aquele menino lia compulsivamente.

Aí estava outro problema. Para que íamos querer um amigo para ler?

Leitura, segundo minha mãe e dona Lurdinha, é atividade solitária.

Solitária e silenciosa.

A verdade é que não queria ser amigo de Tibério. Simplesmente não precisava.

Eu apenas permitia que ele me acompanhasse na volta da escola. Permitia porque não havia como me esquivar daquilo. Morávamos no mesmo bairro e, portanto, seguíamos quase que pelas mesmas ruas até nossas casas.

No começo ele pedia para me acompanhar, depois, com o tempo, passou a ser uma companhia constante e até natural.

Não eram raras as vezes em que eu precisava diminuir a velocidade dos meus passos para que ele não ficasse para trás.

Era um incômodo sem tamanho aquilo. Principalmente nas quartas-feiras quando eu precisava chegar mais rápido em casa, porque tinha algo muito importante para fazer logo depois do almoço: às treze horas precisava estar na estação de trem.

Da cozinha veio mais um chamado de mamãe. Era preciso ir almoçar.

***

“Viagem ao centro da Terra”. Este era o livro que havia conseguido emprestado e que pretendia terminar em duas semanas. Mas passados quase oito dias do início da leitura, pouco havia avançado. Que me perdoasse Júlio Verne, mas minha viagem naqueles dias definitivamente era outra.

Atirei sobre uma mesinha de canto da sala o livro e subi para o meu quarto. Ao sair dali olhei o relógio de parede: quatro horas.

Ainda faltavam várias horas para terminar o dia, para eu ir para a cama, para vir outro dia... e muitas e muitas outras horas para terminar as férias.

Instantes depois estava deitado em minha cama, com as mãos cruzadas sob a cabeça e os olhos mirando o nada no teto. Entretanto, os pensamentos estavam distantes, na estrada de ferro que passava nas proximidades da fazenda de meu tio Afonso.

A casa naquela hora da tarde estava mergulhada em silêncio. Na rua algumas vozes de vez em quando podiam ser ouvidas, mas o resto era quietude e ausência.

Ausência!!

Jamais havia imaginado que aquela palavra teria um significado tão intenso quanto naquele momento.

Estava ali mergulhado em meu mundo de quase nada quando ouvi a voz de minha mãe anunciando o seu retorno da rua.

– Ricardo, está aí em cima? – indagou ela enquanto subia as escadas.

Tive por um instante vontade de não lhe dar resposta alguma, pois queria ficar sozinho. Sozinho com Maria Rosa.

Mas respondi ao seu chamado.

– Não me diga que desistiu da leitura – comentou mamãe, trazendo nas mãos o livro que eu havia deixado na sala minutos antes.

– É que...

Não terminei a frase e ela me interrompeu.

– Afinal o que está acontecendo, meu filho? – indagou minha mãe com ares de preocupação verdadeira. – Você tem andado meio estranho desde que voltou da fazenda. Já conversamos sobre o que aconteceu no rio. Nem eu nem seu pai estamos aborrecidos com aquilo. Foi, diríamos, um acidente. Graças a Deus você está bem e nada aconteceu nem com seu tio nem com o empregado dele.

Não seria justo dizer a ela que o acidente era mesmo a causa de meu alheamento, de minha falta de fome e de sono... Mas muito menos seria conveniente dizer a ela que o motivo de toda aquela minha lassidão era... Maria Rosa.

“Mas o que é isso, meu filho! Nessa idade e já com este tipo de problema?! Você ainda é uma criança!”

Aquelas provavelmente seriam as palavras de minha mãe. Claro que não haveria nenhum sermão por parte dela, apenas uma série interminável de conselhos.

Afinal, em minha idade era de se imaginar que as preocupações fossem outras. Mas não eram. E por um bom tempo, por anos a fio, Maria Rosa varreu meus pensamentos, tomou o meu tempo e alimentou os meus sonhos.

– O que é então, Ricardo? Está doente?

De repente veio da rua uma voz que se assemelhava a outra que há algum tempo não ouvia. Lá fora alguém passava e falava sobre as maravilhas do parque infantil inaugurado no bosque municipal dia antes. Uma das vozes era muito semelhante à voz de Tibério.

“Tibério?!”, pensei.

– Estou preocupado com um colega de escola – menti.

– Preocupado com um colega de escola?! Ele está doente ou está com algum problema? – procurou saber minha mãe, mostrando-se deveras curiosa.

– Não sei se já lhe contei, mas há em minha classe um menino com paralisia infantil.

– Sei quem é. É o filho de dona Norma. Eles moram na rua de baixo, próximo ao armazém de seu Altino.

– É ele mesmo. O nome dele é Tibério.

– E por que está preocupado com ele, meu filho amado?

– Eu gostaria de ser amigo dele, mas...

– Mas?

– Se eu for amigo dele, muita gente não vai querer ser mais meu amigo.

– Acha mesmo que isso pode acontecer? Seus amigos podem se afastar de você, se você se tornar amigo do Tibério?

– Acho que sim.

– E por que estas pessoas deixariam de ser suas amigas se fizesse algo assim?

– O Tibério não pode correr, não pode jogar bola. Por isso ninguém quer ser amigo dele.

– Mas isso não impede que você e seus amigos sejam também amigos dele. Pelo menos tente para ver o resultado. Acho que aqueles que deixarem de ser seus amigos por causa disso, não são seus verdadeiros amigos. Brincadeiras não se resumem apenas em sair por aí correndo ou jogando bola, meu filho. E o que ele gosta de fazer na hora do recreio da escola?

– Ele está sempre na biblioteca. Ele lê o tempo todo.

– Deve ser então um bom aluno – riu minha mãe.

– Ele sabe tudo que a professora Lurdinha pergunta.

– Está vendo.

– Mamãe, posso lhe fazer uma pergunta?

– Claro que pode.

– Por que Deus fez isso com ele? Você sempre disse que Deus é bom, justo, generoso...

– Deus fez o quê?

– Deixar o Tibério nascer daquele jeito.

– Não acho que Deus tenha algo a ver com isso não. Mas se tiver, pode acreditar que Ele está reservando alguma coisa grandiosa para este menino.

– O que quer dizer com isso, mamãe?

– Gostaria que guardasse os nomes de duas pessoas muito importantes: Helen Keller e Beethoven.

– Quem são estas pessoas? – perguntei curioso sem sequer imaginar de quem se tratava.

– Helen Keller é escritora americana e Beethoven foi um músico que nasceu na Áustria.

– E o que tem estas duas pessoas com o Tibério? – procurei saber, visivelmente mais curioso ainda pelo rumo que aquela conversa estava tomando.

– Tudo. A Helen Keller nasceu cega, surda e muda e mesmo assim se tornou uma das mulheres mais importantes da América do Norte. Formou-se em universidade e já escreveu vários livros. Já o Beethoven, aos 26 anos ficou surdo e mesmo assim continuou a compor maravilhosas músicas. Músicas que daqui a cem, duzentos, trezentos anos serão ouvidas e admiradas. E dizem os entendidos, que foi após a surdez total que ele produziu algumas de suas mais importantes obras.

– Como é possível uma pessoa surda conseguir compor música??!!

– Talvez aí esteja a mão de Deus, meu filho. Quem sabe com seu amigo Tibério isto já esteja acontecendo. Deus para compensá-lo pelo problema físico que ele tem está lhe dando alguns dons que as pessoas comuns não possuem. Mas em todos estes casos, acho que Deus sozinho não fez nem faz nada. Essas pessoas precisam de um esforço imenso para conseguir superar dificuldades. Com seu amigo da escola, somente o tempo nos dirá, mas pelo visto...

– Não havia pensado nisso – disse eu depois de alguns instantes de pura meditação.

– Já imaginou quanta honra para alguém hoje em dia dizer que é amigo da Helen Keller desde a infância?

– Sabe aquele dinheiro que disse para a senhora que estava guardando para comprar uma coisa?

– Sim. O que tem o dinheiro a ver com isso que estamos falando?

– Queria comprar uma muleta para o Tibério.

– Está pensando em comprar uma muleta para o seu colega de classe?!

– É. Achei que ele andaria melhor se tivesse uma – disse eu quase envergonhado pelo que estava revelando.

– Meu filho amado, que bom que pensou nisso, mas lhe garanto uma coisa: o seu colega não precisa de muletas para andar. Ele precisa mesmo talvez seja de sua amizade, do seu companheirismo e de todos que estão à volta dele. Não tenho nenhuma dúvida de que um dia você vai se orgulhar de ter sido amigo dele.

Naquele momento tive uma vontade imensa de chorar, mas me contive.

Aquela era a minha mãe, a mulher mais incrível que Deus poderia ter colocado neste mundo.

Com aquelas poucas palavras ela acabara de me dar mais uma lição para toda a minha vida.

VERSO E PROSA
Enviado por VERSO E PROSA em 06/09/2017
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