DONA LURDINHA
Dona Lurdinha, desde o primeiro dia de aula, me despertou os mais diversos sentimentos. Aos treze anos ousei me apaixonar por ela. Era uma daquelas paixões avassaladoras, daquelas que nos fazem perder o sono, a fome e principalmente a atenção durante as aulas. E isso quase acabou me custando caro.
Dona Lurdinha possuía uma beleza singular, vestia-se a rigor e sempre estava com um sorriso largo para quem a ela se dirigisse. Impossível não amar de alguma maneira aquela mulher de alma generosa e aspecto quase angelical.
– Ricardo? – chamou ela.
Ricardo sou eu, que neste momento me apresento formalmente. Sou Ricardo Nunes Fontenelli, tenho treze anos e um amontoado de sonhos na cabeça. Não vale a pena ficar aqui tecendo comentários sobre mim mesmo, porque isso não fará nenhuma diferença. O que acho que devo dizer é que nasci na cidade de Ribeirão Preto, no ano de 1931.
- Ricardo?! – voltou a chamar a professora. – Sua vez de ler.
Ler??!! Ler o que, meu Deus?!
– Página 77, capítulo 12 – informou a professora com seu costumeiro sorriso.
Dona Lurdinha, durante uma semana a cada mês, reservava uma hora ao final de cada aula para leitura. Líamos Monteiro Lobato essencialmente. Mas também tínhamos contato com os contos dos irmãos Grimm, assim como algumas obras de Dickens. Por falar em Dickens, Oliver Twist talvez tenha sido a obra que mais me impressionou quando criança.
– E então, Ricardo? É sua vez de ler – voltou a dizer a professora.
Voltei à realidade. Estava na sala de aula e tinha uma tarefa a cumprir: ler cinco parágrafos do livro Reinações de Narizinho.
Abri o livro, procurei pela página e comecei a leitura. Perfeita, segundo a própria professora. Entretanto, somente eu e minha mãe sabíamos o trabalho que dera para atingir aquele nível de leitura, sem atropelar nenhuma palavra, sem gaguejar e mantendo a cadência da pontuação. Foram horas infindas de treinamento.
Talvez tenha sido esta a primeira lição aprendida na minha época de menino: o treino é fundamental para se chegar à perfeição.
Depois de mim, era a vez de Rosa ler o próximo trecho.
Maria Rosa era recém-chegada à escola. Muito tímida, depois de quase um mês, não havia feito amizade com quase ninguém. Como dizia minha mãe, era daquelas pessoas que entravam mudas e saíam caladas. Acho que para ela, ler em voz alta era tarefa extremamente dolorosa. Era expor-se, mostrar-se.
Mas, curiosamente Maria Rosa sempre fora menina que tinha um sorriso eterno no rosto. Por isso, era quase impossível não simpatizar com ela.
– Rosa, agora é a sua vez. Continue de onde Ricardo parou – pediu a professora.
– Mas professora... – disse a menina num fio de voz.
– Seu livro está debaixo de sua carteira, do lado direito. Pegue-o e abra-o na página 83.
Olhei para minha colega de classe neste momento e achei que ela ia se debulhar em lágrimas. Com as mãozinhas trêmulas, tateou o local onde dona Lurdinha havia dito que se encontrava o livro, e de lá o retirou.
Era um livro com a capa recoberta com um papel de cor parda. Portanto, diferente dos livros de todos nós.
– Página 83 – repetiu dona Lurdinha.
Sentado na segunda fileira de carteiras do lado direito de Rosa, de onde me encontrava não foi possível ver de fato que livro era aquele. Contudo, algo me dizia que não era o livro de Lobato que a menina tinha nas mãos. Estaria nossa angelical professora tentando, de alguma forma, colocar aquela pobre menina em uma situação constrangedora?
Visivelmente nervosa, Rosa não disse uma palavra sequer até abrir o livro na página determinada.
Abriu e leu. Leu com uma voz que chegou aos meus ouvidos como a mais melodiosa de todas as músicas.
Doce era a voz de Maria Rosa.
Leu lentamente, mas sem cometer uma falha sequer. Foram mais ou menos cinco minutos em que a turma calou-se por completo. Naquele momento Narizinho, Visconde de Sabugosa e Pedrinho deixaram de ser apenas personagens e se transformaram em gente como nós mesmos. Ganharam vida, tamanha era a realidade que a menina impunha a eles e às suas respectivas ações.
Terminada a leitura, Rosa colocou o livro sobre a carteira e se sentou. Olhei de esguelha para ela e vi claramente as lágrimas descendo pelo seu rosto. Rosa chorava um choro silencioso, e que seria só dela, não fossem as lágrimas.
Mas por que a menina estava chorando?
Havia lido tão perfeitamente que até assemelhava-se àquelas atrizes das novelas do rádio, das quais mamãe tanto gostava.
O trecho destinado à menina era o último a ser lido naquele dia.
Minutos depois estávamos todos na rua, indo de volta para casa.
Curiosos, todos se perguntavam como Rosa conseguira a façanha de ler em um outro livro um trecho pedido pela professora. Sim, porque estava certo, aquele nunca fora o livro de Monteiro Lobato.
Aquele foi um mistério que durante anos ficou escondido a sete chaves. Somente soube da verdade quando, já adolescente, durante uma pesquisa na biblioteca da escola, encontrei o livro Helena, de José de Alencar.
Folheando-o vi que sobrepostas às páginas 83, 84 e 85 havia outras páginas. Nelas estava um texto escrito à mão com uma letra minúscula e que parecia um bordado, tamanha era sua perfeição e delicadeza. De imediato reconheci a letra da professora Lurdinha.
Ela, num gesto de generosidade sem medidas, e sabendo que Rosa não possuía o livro, copiou o trecho do livro de Lobato, aquele que caberia à menina ler naquele dia, e o colocou ali. As folhas estavam presas às originais do livro com três pequenos grampos de cabelo.