Assim ou ...nem tanto.108

O perfume.

Fico com todos os registos comuns e com outros que, não sendo meus, me contaste. Nunca ninguém desaparece sem nos legar memórias. São elas que evocam os que perdemos e nos deixam caminho para as lágrimas em que nos lavamos de imperfeições de carácter, de falhas de afeto ou de ausências. Enquanto recordo ou quando sonho, há sempre um retrato teu que identifico perfeitamente. Vens como pássaro e dizes-me recados igualmente estranhos em aves. Trazes palavras que leio, ouço ou sinto e contas-me, pelo avesso, coisas da vida. Quando acordo percebo que não estás, que não voltarás, que terei de aguardar o fim do tempo para recomeçar o amor no lugar em que se partiu. Tenho o que sobrou de ti e ainda não se diluiu. Tenho o que fixo na escrita mas entendo que até aí a tua marca se vai apagando. Haverá a seguir um sono pesado e sem sonhos, sem pássaros, sem evocações ou caminhos. No fim desse silêncio escuro já não te encontrarei, já não haverá ninguém. Até lá, irei perdendo a certeza sobre o contorno da tua boca, a exata cor dos teus cabelos, o tom da tua voz. Um dia vou hesitar sobre factos da nossa história e não vou saber descrever-te com fidelidade. Morre-se devagar na ideia dos que ficam mas apagamo-nos como um perfume. Ainda sinto o teu na minha pele mas só quando te penso com força.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 06/09/2017
Código do texto: T6106271
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