Quando coloco um vestido, vejo-o mais por dentro do que no espelho.
Sinto a solidão curtida de sol e de frio, no ruído constante do tractor.
Olho o fio com que é feito e sinto nos meus dedos os calos do operário da fiação.
Sinto os ombros doloridos das costureiras debruçadas sobre as máquinas durante horas e horas, repetindo infinitamente os gestos de coser bainhas, abrir costuras, montar peças como puzzles, exaustas,
de olhos ardendo e pensamento distante:
“A que horas poderei ir buscar o meu filho?”
“Que farei para o jantar?”
“Tenho de estender e passar a roupa, já não há o que vestir”
Quando coloco um vestido, se os meus olhos reluzirem, não será de deslumbramento mas de consternação pelo mundo que temos de enfrentar.
Além do universo abstracto dos que desenham, compõem, se dispõem a vestir trajes alheios, desfilando nas passarelas, como bonecos mecânicos.
E da arrogância dos senhores que observam algarismos escorregando defronte dos olhos como carreiros de formigas.
As grandes barrigas alimentam-se de todo este labor, e as abelhas-mestras refastelam-se, produzindo infindáveis ovos de ambição, reluzindo por trás da cegueira colectiva.
... Não desisti de sonhar com um paraíso onde Eva se atavie de inocência e desobedeça aos deuses, em busca de sabedoria.