PERCALÇOS DE UMA FOBIA
Certo como dois mais dois são quatro, morrerei um dia. Não temo a morte, mas a aproximação do dia do desenlace. Considerava-me um jovem destemido, porém, com o passar dos anos, percebi-me um adulto um tanto medroso ao ponto de ter tido, uma vez, sério, medo de minha própria sombra. Verdade! Pensava ser uma expressão para denotar temor exagerado, mas uma vez aconteceu comigo, mesmo! Foi muito esquisito e revelador. Não sabia que isso era possível até eu ser surpreendido pela minha própria.
Não gosto de dormir no escuro total se estiver sozinho, não gosto de aglomeração de pessoas, andar de metrô ou ônibus cheio me angustia, ir ao cinema só durante a semana porque as sessões estão mais vazias.
Restaurante gosto de chegar logo no primeiro horário, seja na hora do almoço ou à noite, igreja adoro quando elas estão vazias e nas missas uma meia dúzia de fiéis pingados e mesmo assim bem distantes de mim.
Quanto a andar de carro, fico mais tranquilo, melhor ainda quando estou sozinho.
Mas, o que me deixava realmente transtornado, apavorado, angustiado eram os eventos e festinhas da empresa em que trabalhava. Palestras, convenções, convescotes, cursos, seminários, coquetéis eram verdadeiros instrumentos de tortura. Náuseas, palpitações, nervosismo eram em mim o resultado das sessões torturantes conduzidas pela direção comercial da empresa. Posso entender muito bem o pobre do cachorro que tem medo de fogos quando de Reveillon ou finais de jogos de futebol.
Com o tempo e quando dava, é claro, comecei a inventar desculpas para não ir ou pelo menos sair bem antes em qualquer um dos eventos, especialmente, festas e coquetéis.
Lembro uma vez, num grande evento da publicidade organizado anualmente pela empresa, já estava eu sofrendo por antecipação pela obrigatoriedade do comparecimento à festa. Passara o dia remoendo isso dentro de mim, tentando esquecer e já pensando estar de volta a casa – usava muito esse tipo de artifício quando tinha alguma coisa incômoda no dia, uma reunião pesada ou algo a fazer ou falar tão ou mais complicado ainda. Nessas ocasiões já me imaginava no final do dia, em casa, tranquilo, seguro da missão cumprida. Contudo, havia chegado a tão temida hora de ter que me deslocar para o evento. Resignado e justificado já estava quase chegando ao hotel da celebração, quando recebo uma chamada da secretária que atendia o nosso grupo, uma espécie de secretária compartilhada, se é que posso assim chamar, que a empresa disponibilizava para a sua equipe de vendas. Um luxo necessário para um bando de gente desorganizada e alegre. Pois bem, quando atendi a ligação, a moça com uma voz cansada, disse-me que havia tropeçado ao correr para não ser atropelada por uma moto em velocidade, quando atravessava a rua em frente ao prédio em que trabalhávamos. Ela não tinha condições de dirigir até chegar ao hospital, pois a dor era intensa. Como não havia mais ninguém no escritório, recorria a mim na tentativa de poder acompanhá-la ao hospital.
O álibi perfeito, minha colega havia-me proporcionado sem saber. Dei meia-volta na direção e fui socorrê-la.
Encontrei a minha colega sentindo muita dor e não podendo mais apoiar o pé no chão. Segurei-a firme pela cintura e instalei-a no banco do carona de meu carro. Partimos para o hospital. Devido ao adiantado da hora, não havia mais trânsito e chegamos em poucos minutos.
A emergência do hospital estava vazia e fomos atendidos rapidamente.
Sorte de minha bonita colega, pois havia sido apenas uma forte luxação. Contudo, suficiente para manter o local imobilizado por quinze dias e ela afastada do trabalho por igual período.
No final, posso dizer que tive uma noite tranquila, as alas do hospital desertas, enfermeiras conversando em voz baixa, a companhia agradável de minha bela secretária, a sensação de ter-lhe sido útil concedendo-me uma modesta oportunidade de retribuir-lhe um pouco pelo muito que ela me ajudava diariamente no escritório.
Mas, o melhor de tudo foi no dia seguinte quando não precisei utilizar uma não convincente desculpa para justificar a ausência no evento. Ao contrário, todos só queriam saber o que havia acontecido com a nossa colega, reconhecendo a minha atitude solidária e desprendida que havia-me impedido de ir a grande festa da publicidade para ajudar uma companheira de trabalho.
Realmente, havia sido um grande ‘sacrifício’ para mim.