Diário de Sonhos - #118: O Poder do Medo
Este foi um sonho bem confuso e repleto de fragmentos que não lembro muito bem em que ordem aconteceram.
Sonhei que estava de volta à escola, o Colégio Tobias de Aguiar. Ao chegar na porta os supervisores e coordenadores me cumprimentaram, o seu Paulo, o Igor, a dona Edneia. "Renan, há quanto tempo! Como tem ido?". Logo em seguida vi meu colega Eduardo e perguntou como eu estava, o que estava fazendo. "Ah cara, eu acabei de pedir demissão do metrô. Nunca mais trabalho naquela merda". "Poxa cara, mas é um trabalho bacana, não é? Paga bem, não paga?". "Pagava véio, agora tá uma bosta, tudo privatizando e assistência médica cada dia pior. Nunca mais volto pra lá, nunca mais quero trabalhar com usuário sem educação". "Mas e aí, o que você vai fazer? Você se formou?". "Sim, me formei em Rádio e TV. Gosto de trabalhar com vídeo, com música, com arte. Vou fazer o que eu gosto".
Na porta da escola as pessoas me cumprimentavam. Não tinha mais valentões me enchendo o saco, não tinha mais patricinhas me chamando de gordo horroroso. Todos gostavam de mim e eu me sentia feliz por estar ali.
Outro colega de sala, também chamado Eduardo, estava perdido e não sabia onde era nossa sala. Disse para ele me acompanhar e subimos até o último andar. Estava todo vazio, a não ser por nossa sala. Lá dentro muitos rostos conhecidos e queridos. E ninguém tinha envelhecido um único dia, apenas eu. Mas a sala estava lotada, e só tinha lugar vago onde eu não queria sentar: perto dos caras que me zuavam. Zequinha, Marcílio, Duduxo. Abaixei a cabeça e pedi licença. "Essa cadeira tá ocupada mano". E tinha uma mochila em cima da cadeira. "Essa cadeira tá ocupada mano." Eu queria sentar na frente, mas todas as cadeiras estavam ocupadas. Lá do fundo da sala o segundo Eduardo acena e vejo uma cadeira vaga. Sento na última cadeira da fileira, mal consigo enxergar a lousa.
Abro a cortina e olho lá pra fora. Está um dia chuvoso e cinzento. Há um outro prédio próximo ao nosso cujo topo está na mesma altura da minha janela. Há uma espécie de ponte, sem corrimão e sem proteção, que liga aquele prédio ao nosso. Sob esta ponte há uma briga. Uns caras usando manto preto soltando raios pelas mãos. Logo entram dois enormes minotauros carregando machados cegos e começam a brigar entre si, arrancando muito sangue do outro. Aquilo me deixa surpreso e com medo. Chamo o professor, mas quando olho de volta pra sala ela está completamente vazia e escura.
Agora estou dentro de um quarto pequeno e escuro. Há cortinas rasgadas e uma cama antiga e em péssimo estado. As paredes da sala parecem pintadas de preto, e as janelas também estão pintadas de preto. Não há portas.
Estou sentado numa pequena mesa, tomando café da manhã. Tem sucrilhos com leite num copo onde deveria ter chá mate e na tigela onde deveria ter sucrilhos com leite tem chá mate. Concentro-me no chá mate, nos pequenos pedaços de erva triturada boiando na água, e descubro que tenho um poder mágico. Fixo o olhar no chá e começo a pensar em coisas ruins. Penso nas pessoas que me machucaram, nos meus medos, nas minhas tristezas. Uma forma humana preta e esfumaçada começa a tomar forma na parede mais longe de mim. Ela vem andando até mim, lenta e decididamente. Pára à minha frente e faz alguma coisa que me deixa apavorado. Sons de dor e tristeza saem de todos os cantos, uma sensação de enjoo e medo e náusea e vulnerabilidade. Num piscar de olhos a forma negra desaparece e repito o processo, invoco outra forma negra que faz a mesma coisa comigo. Assim que ela vai embora percebo que minha visão está diferente. Enxergo melhor no escuro, enxergo melhor as coisas e, de alguma forma, consigo enxergar as propriedades das coisas. Quando essa coisa nasceu, do que ela é feita, o que ela está pensando. Concentro-me num vaso de flores mortas no canto da sala e consigo fazer ele flutuar poucos centímetros antes dele cair e se espatifar.
Como se estivesse assistindo a mim mesmo de fora, sem controle de minhas ações, vejo-me seguindo por um caminho pouco saudável. Estou maravilhado com meus próprios poderes e ignoro o preço que devo pagar por eles. E ignoro também o quão bobo estes poderes são. Flutuar um objeto por cinco centímetros em troca de permitir que entidades estranhas tomem conta de meu corpo. Mas não consigo me fazer parar de invocar mais e mais entidades pra dentro de mim. Mostro isso pro meu amigo, o John Lennon (sério, eu tenho um amigo com esse nome), e ele diz que isso é o poder do medo. Que o poder da luz não machuca e cura. Não quero curar, quero ler as coisas e fazê-las flutuar.
Estou novamente no quarto, fora do meu corpo, assistindo a mim mesmo. Estou com uma aparência horrível, doente, asqueroso, tossindo sem parar. Todos os móveis foram removidos. Há apenas uma poltrona e uma tela de cinema na parede onde projeto meus poderes de invocação. Há velas pretas acesas em volta da poltrona formando um círculo. Entendo que estou prestes a fazer algo que vou me arrepender muito.
Estou de volta dentro do meu corpo, mas ainda sem controle de minhas ações. Focalizo na tela e faço perguntas. "Tem alguém aí fora?". E aparece um texto na tela respondendo: "Sim". "Esse alguém vai me fazer mal?". "Sim". Só então percebo que estou viciado no meu sofrimento e começo a invocar a criatura. "O que é o agente Dale Cooper?". Uma imagem do personagem de Twin Peaks aparece projetada na tela, olhando para o canto da sala. Olho para o mesmo local. Sinto uma presença grande e poderosa, mas oculta pelas sombras. Sinto sua respiração de fera e o calor que emana de seu corpo. "O agente Dale Copper é o diabo?". Três letras, uma palavra. "Sim". A tela de cinema some. À minha frente está parado o diabo. Ele me encara, sem nunca esboçar nenhum movimento. Não consigo tirar o olhar de seu rosto. Mas infelizmente não consigo descrever o que era seu rosto. Era muito complexo, cada vez era uma coisa, cada piscada de olho ele mudava. E me trazia várias sensações diferentes, sensações ruins de perda e desamparo. Era como se estivesse olhando para dentro de um buraco negro sugando a minha alma.
São Paulo, três de setembro de dois mil e dezessete.