ETNOCÍDIO

Certa vez, um grupo de garimpeiros estava com problema com uma tribo de índios. A tribo estava numa área de diamantes, na fronteira de Roraima com a Venezuela: uma área tensa de disputas com os ameríndios e aventureiros do sul do Brasil. Os índios não davam valor às pedras preciosas e estavam prejudicando a entrada das máquinas e bateias de beira rio - por meio de constantes revoltas e incêndios junto às representações da FUNAI na região.

Pensaram em entrar atirando com pistoleiros, todos os garimpeiros prejudicados. Isto praticando uma possível chacina contra os teimosos índios. Eram 300 índios não aculturados, o que inviabilizava a matança - pois existiam ONGs internacionais naquela área. Chamaria também atenção da imprensa.

Por isso, ficaram sabendo de um escritório com antropólogos que contra-atacavam laudos de demarcação de terras indígenas pelo Governo Brasileiro: os dois eram ex-funcionários da FUNAI e doutores em antropologia na USP (dando credibilidade ao que escreviam).

Por esse motivo, contrataram os serviços antropológicos destes dois maus elementos, Carlos e Fábio.

Eles fizeram a seguinte estratégia, após lerem os relatos dos etnógrafos clássicos, principalmente os escritos por Lewis Morgan e outros escritos mais recentes, como do sociólogo Pierre Bourdieu e seu conceito de violência simbólica.

Um deles comprou um caminhão cheio de celulares com jogos e aplicativos na 25 de março, uma rua de comerciantes de São Paulo: o alvo eram as crianças e adolescentes.

Gilberto Freyre já havia ensinado que os jesuítas descaracterizavam a cultura dos indígenas por meio dos curumins. As crianças eram alvo de catequese.

Outro comprou um caminhão refrigerado com sorvetes tipo picolés, cones e copinhos, mistos ou de chocolate caramelizados, numa representação em Boa Vista, a capital de Roraima.

Dessa maneira, às 10 horas da manhã, quando o cacique contava histórias para os curumins, os dois chegam buzinando, o que causou um grande alvoroço na aldeia, provocando até uma certa reação violenta de um dos assessores do cacique.

Os dois descem dos caminhões: eles abrem os fundos das carretas e dizem que são amigos dos índios e que vieram em paz. As crianças vão ao encontro dos dois baús, curiosas em saberem o que tinha lá dentro.

Começa a distribuição! O cacique fica esvaziado de público. Todos os jovens o deixam falando sozinho das tradições e mitos que marcavam a identidade cultural daquele povo.

Os curumins vão cada qual para o seu canto, para sua moita, e começam a fuçar os celulares e a se lambuzarem de sorvete.

Os dois antropólogos, que sabiam que os mais velhos podiam zangar, partem. Seguem pela estrada de terra e somem de vista.

Noutro dia, na mesma hora, descem, só que desta vez com baús de bonés, bolas, relógios digitais – fazem a mesma zoada e os curumins ficam não dóceis. Chegam a brigar pelos presentes.

Com dois anos, os curumins ficariam mais jovens. Entediariam-se com a aldeia - pois os vídeos do celular mostravam as cidades fascinantes dos brancos.

Ficaram como era previsto pelos antropólogos sabendo de uma cidade perto.

Partem para Boa Vista e outros até descem mais, sendo basicamente moradores de ruas com o tempo em Fortaleza e Manaus. Alguns conhecem o crack e a mendicância.

Os antropólogos pedem aos garimpeiros mais uma parte dos seus honorários, pois afirmam que limparam a área sem derramar um sangue se quer.

Os índios da aldeia agora usam Nike e vivem com fones de ouvido, sem conversarem com mais ninguém.

Tornam-se sócios dos garimpeiros, aprendendo tudo sobre o consumo e a sociabilidade capitalista.

LUCIANO DI MEDHEYROS
Enviado por LUCIANO DI MEDHEYROS em 31/08/2017
Reeditado em 11/04/2020
Código do texto: T6100418
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