Alegre e bem-humorado, desceu de sua velha e barulhenta pick up e foi logo dizendo:
     – Trouxe as grades das janelas e o portãozinho do canil. Onde a senhora quer que eu coloque?
     – Puxa... Ficaram lindas, Mateus! Pode deixá-las todas no quintal, amanhã mesmo o pedreiro vem para chumbá-las.

     Enquanto descarregava sozinho dezenas de quilos de ferro observei o entusiasmo e a alegria do rapaz. Usava sempre aquele mesmo avental surrado e com um forte cheiro de solda misturada a suor. Trabalhava de sol a sol na pequena serralheria no quintal de sua casa. Dali tirava o sustento para a mulher e os dois filhos. Muito falante, aparentava ter uns 38 anos; era franzino, um metro e meio de altura, o rosto magro e a pele negra.
     – Semana que vem eu termino as portas, pra senhora – disse entusiasmado, entre uma ida e outra ao quintal –, estou caprichando nos detalhes que a senhora pediu.
     Eu estava feliz com o trabalho dele. Era um verdadeiro artesão e, acima de tudo, tinha boa índole, era honesto e pontual com os compromissos que assumia.

     Terminada a entrega, a prosa com ele se estendeu ainda por uns quinze minutos, alegre e divertida. Falava com orgulho do trabalho e da família. Em uma mão segurava o cafezinho, na outra o pagamento do seu trabalho.
     – Posso entrar com esse cheque no Banco hoje? – disse apressado batendo a porta da velha e guerreira pick up. – Se não puder eu aguardo uns dias. Só me falar.
     – Pode ir ao Banco agora mesmo se quiser. Sem problemas.
     – Beleza. Vou mesmo. Estou sem dinheiro nenhum essa semana.

     Cinquenta minutos depois, Mateus retornava desolado:
     – A senhora vai ter que ir ao Banco – disse com o cheque nas mãos – a moça do caixa falou que há um problema com o cheque e não pode me pagar.
     – Problema com meu cheque? Perguntei incrédula.
     Sem entender o que estava acontecendo conferi o cheque que estava em suas mãos. Corretamente preenchido; numericamente e gramaticalmente. Data e assinatura sem problema algum. Sem fundo? Não, de maneira alguma. Eu havia conferido o saldo no dia anterior.

     Mateus estava calado, quieto e cabisbaixo. Visivelmente triste e abatido. Eu, entre incrédula e constrangida. Cliente do Banco desde 1993 nunca tivera um problema sequer com o Banco, quer seja com cartões ou cheques.
     – Vou ao Banco com você – disse decidida – vamos ver o que está acontecendo.

     Mateus permanecera calado durante todo o trajeto respondendo monossilabicamente o que eu perguntava. O seu riso se fora; havia um derrotismo no seu semblante. Eu começava a entender o que estava acontecendo, mas me recusava a aceitar. Estava aflita para chegar logo ao Banco.
     
     Fomos direto ao caixa que o atendera. Notei que um dos seguranças, quando nos viu, colocou-se alerta e durante todo o tempo não tirou os olhos de nós.
     – Bom dia! Gostaria de saber qual o problema com este meu cheque que impede que ele seja pago ao Senhor Mateus.
     – Bom dia! – sorriu amarelo a Srta. Camila. – Notamos que sua assinatura está diferente – disse virando-se para o lado chamando a colega de trabalho que confirmou as palavras da amiga.
     – Diferente como? Há 24 anos sou cliente do Banco, minha assinatura sempre foi a mesma e nunca tive problemas com ela.­

     Embaraçada, a jovem continuou - sempre com o apoio da colega ao lado e sob o olhar atento e desconfiado do segurança:
     – Há uma “diferençazinha” aqui no S do seu nome – disse com o cheque nas mãos – que não confere com o cadastro. A senhora precisa renovar seu cadastro de assinaturas. Com certeza a senhora já está um tempo sem fazer uso de pagamentos com cheques, não é verdade? Isso acontece, a assinatura difere com o tempo.
     – Creio que está havendo um engano aqui, Camila – respondi calmamente, – desde janeiro têm entrado cheques meus, mensalmente, pagos ao meu dentista, e em nenhum deles fui chamada com problemas na minha assinatura.
     Mateus que a tudo ouvia em silêncio já havia entendido porque não lhe pagaram o cheque. E eu também. Aos poucos fomos entendendo o discurso da hipocrisia.

     Visivelmente constrangida e sem saída a Srta. Camila insistia:
     – Olha, a senhora pode sacar o dinheiro aqui no caixa com o cartão e depois, num outro momento, a senhora renova o cadastro de assinaturas.
     – Não quero sacar o dinheiro. – disse firme olhando pra ela – Quero que você desconte o cheque pra ele, uma vez que eu estou aqui dizendo que a assinatura é minha e que em nada difere dos cheques que têm sido descontados aqui mensalmente por uma pessoa branca e bem vestida.
     Entendendo o que eu estava querendo lhe dizer e os aborrecimentos que sua negativa poderiam lhe trazer, a Srta Camila carimbou o cheque, abriu a gaveta, e em silêncio entregou o dinheiro a Mateus.

     Tentando disfarçar os olhos marejados, meu amigo serralheiro conferiu o valor, colocou no bolso e agradeceu sem dizer nenhuma outra palavra.
     Não havia o que dizer. A dor que ora sentia, já a sentira outras vezes. Sabia que estava longe de ter fim. Longe de um dia ser aceito pelas tantas Srtas. Camilas, de um país, onde o discurso da hipocrisia legitima a miserabilidade do preconceito.

 
© Suzana França 2017: Da série: Histórias que a vida me deu.
 
Suzana França
Enviado por Suzana França em 29/08/2017
Reeditado em 29/08/2017
Código do texto: T6098221
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