Nosso Quarto v.2
É como tentar fazer uma coisa meio que impossível. Toda vez que eu vejo esse quarto, contemplo, sinto a centelha do encantamento, o fascínio, e muito mais do que isso, que eu tento expressar, mas as palavras se descompõem antes de sair. Esse repetido deslumbramento que toda vez me envolve tem algo de inexprimível, sei lá. Inspiro forte, ergo o olhar, prendo a respiração. Num gesto irrefletido, esse momento faz meu braço trazer a mão para junto do peito, a fonte daquelas impressões todas, querendo encontrá-las. O sentimento surge, fica flutuando em algum lugar, talvez entre a consciência e a falta dela, como quem já vai sair, já já, no próximo minuto. Minha mão logo se fecha como para agarrar essas sensações que surgem no peito, disposta a capturar e libertar a forma de expressá-las. Só que não.
A impressão fica acumulada na garganta, como se preparando para se expressar. A sensação se forma no corpo, enche o peito com a sua intensidade, sobe pela garganta se encaminhando para a liberdade, para ser expressa, mas não. Algo não funciona no processamento das sensações em ideias e da articulação delas em fala nestes breves e intensos momentos de angústia e de emudecimento. Esse turbilhão hipersensorial de emoções misturadas, talvez integradas ou interligadas, mas sempre entreveradas, parece que ultrapassa os limites do que pode ser expresso.
Para alguém que não seja eu, a coisa toda pode parecer muito simples: um quarto, uma mesa, duas cadeiras... Mas eu investigo, procuro decifrar o que é que me causa tamanho tumulto de impressões. Olho então para um lado e para outro, para cada pequena coisa. Começo a esquadrinhar cada canto, percorrendo os espaços em busca de entender este mosaico de sensações… Vejo a cama, tão sólida, que me transmite uma segurança que me soa eterna. Juntinho dela, vejo a mesa e as duas cadeiras, e parece que sinto nas fibras da palhinha das cadeiras a rusticidade simples desse ambiente. Também percebo, no canto dos poucos cabides e roupas, o despojamento deste quarto. Quando olho ao redor e reparo na janela e nos quadros pendurados nas paredes, parece que esses elementos mostram para mim uma ausência de excessos, uma indiferença aos luxos do mundo. Algo assim tão casual e tão elegante, sem embelezamentos, tendo apenas o necessário, como pode? Sinto um encanto imediato na disposição dos móveis no espaço, e só então percebo que segue uma simetria calculada, tudo disposto de maneira proporcional.
Observo atentamente esses detalhes para tentar entender, pois tem que ter algo ali que explique tudo, mas, como dizem... “pareço estar sendo vaga como um paciente que não sabe listar com precisão os seus sintomas”. Sinto que me falta habilidade expressiva frente à imensidão dessas sensações. Minha expressão parece ser obstruída por alguma incapacidade de transformar esse encantamento, essa fascinação, em sons articulados, em algo mais que um grunhido, ou que um suspiro.
Ainda assim, teimo em alcançar a compreensão desse sentimento, tentando enquadrá-lo em termos que expressem a sua intensidade. Quando percebo, já estou movendo a mão na direção do peito mais uma vez, pronta para agarrar essa expressão. Mas ela me escapa de novo. E continuo procurando os detalhes que medeiam essas emoções… Quando às vezes sinto o ranger das tábuas do chão, acho que isso me evoca algo como uma espontaneidade ingênua e até afetuosa do ambiente. É tão intensa, que sinto como, sei lá, inexprimível, alguma coisa ainda indefinida para mim mesma.
Ao mesmo tempo, também percebo o padrão das pinceladas nas paredes, no piso e na textura dos móveis, que me produz uma tranquilidade indizível, uma atmosfera repousante. E, mesclados aí, os inefáveis tons de azul-branco das paredes, o verde-cinza do soalho, os marrons-amarelos das madeiras transmitem uma agradável sensação de harmonia e despreocupação. Talvez mais que tudo, a intensidade da coberta vermelha me inspira sensações de calor e conforto, aconchego, bem-estar e acolhida. É tudo isso, mas não é só isso. Essas emoções são meio que interconectadas umas com as outras, de um jeito que parece que o imenso todo não é só a junção das pequenas partes, é muito mais.
Sinto que esses detalhes explicam um pouco do emaranhado de emoções que experimento ao ver este quarto, mas essas constatações isoladas não são tudo. Procuro perceber o todo, toda a extensão do quarto, em busca daquilo que poderia definir essa sensação ele me evoca. Ela vem do fundo, sei lá, de algum fundo, como se houvesse uma multidão de palavras se debatendo para compor a expressão daquela sensação, mas não pudessem parar e enfim se articular em algo realmente exprimível. Quando parece que as palavras vão vir, num instante me percebo a posicionar o braço para a frente e a mão aberta com a palma para cima como a de um tonto poeta prestes a receber a musa e declamar algo inspirado... Só que não.
Procuro então um olhar distanciado... mas a própria perspectiva sempre me parece convidativa. De novo aquela coberta vermelha… ela causa uma sensação densa, é o detalhe que se destaca de tudo mais, e ainda assim parece unir tudo em volta... sei lá, como um vórtice, aquilo que me chama para ali dentro. É o todo que provoca essas impressões de atração, e ainda algo além. Parece confuso, é um tanto de cada uma dessas coisas, e mais. O espaço me parece ao mesmo tempo pequeno e gigante, compacto e infinito, um refúgio de privacidade e satisfação. Sinto que é tudo de que eu preciso. Ele me oferece uma sensação de ilimitado, de expandido. É elegante e harmonioso, traz um misto de plenitude e alegria. É como um sentimento submerso que eu pareço ter perdido a capacidade de expressar. Sinto como se a tal coisa estivesse entre o peito e a garganta, densa como se eu pudesse agarrá-la.
Mais uma vez, inspiro longamente e, quando expiro, achando que vou expressar de improviso tudo que este quarto me evoca, as sensações não conseguem saltar para dentro dos limites da consciência que ordena as ideias para se realizarem em palavras enfileiradinhas, ordenadas e expressando coisas com sentido. Imagina só que louco, articular a sequência exata de palavras cheias dos significados precisos! Mas eu tenho só os significados, a essência dessa intensa impressão, que teima em não se transformar em algo compreensível. As palavras meio que conseguem se extraviar, se desintegram antes de sair para a liberdade.
Olho de novo e fico imaginando passar o dia ali, dormir, ficar com o meu amor, contemplar os quadros, ler, escrever. Quero morar ali pra sempre. Ele provoca essa inspiração, essa libertação, tão intensa e ao mesmo tempo tão suave, se é que isso é possível. Por que toda essa dificuldade? Por que será que essa impressão não se exprime? É possível que a sensação fique ainda mais intensa por conta desse mistério? Sei lá. Eu só tenho a sensação dessa intensidade e do seu inexprimível.
Eu me identifico tanto com esse quarto, que, mesmo ele sendo do Vincent, há muitos anos, eu o considero também muito meu.